É difícil falar sobre partidas

Mas é ainda mais difícil não falar.

Gabi
5 min readApr 22, 2024

Acho que um dos meus maiores medos é ser feita de boba, até porque é muito fácil. Eu sou alguém que acredita nas pessoas (na maioria das vezes e na maioria das pessoas). Então eu desconfio de tudo, mas acredito com certa facilidade. E sou feita de boba na mesma medida que quase todo mundo, porque acho que não existe nada que possa evitar isso de fato.

Na verdade eu não desconfio de tudo, só de algumas pessoas. Tem gente que não me inspira confiança. É um tipo de implicância que até hoje não falhou. Não que a pessoa vá ser ruim, maldosa. Mas não em algum momento ela vai provar que não é de confiança e depois vai fazer isso repetidas vezes até eu aceitar que deveria confiar mais na minha intuição.

Muitas vezes eu demoro pra aceitar, afinal, eu tenho que ser boa, tenho que ser legal. Tenho que perdoar e dar a outra face, sim, a tal da criação cristã fez um estrago no meu psicológico, ou meu psicológico já era estragado e foi um campo fértil pra criação cristã me deixar ainda mais vulnerável.

De qualquer forma, tem coisa que não é criação ou ideia de uma pessoa ou outra, é só a vida acontecendo e nos surpreendendo.

Romper

Não posso ficar presa na minha criação cristã e na raiva de qualquer conquista receber o selo “Louvado seja…”, como se nosso esforço não tivesse nada com o resultado. A gente cresce para aprender a lidar com as coisas, mas o que vem forte da infância é muito difícil. A culpa. A sensação de estar fazendo alguma coisa errada por pensar diferente do que se foi ensinado é muito cruel.

Não me entendam mal, e não atribuam tudo à minha mãe. Ela é só mais uma pessoa dentro da sociedade reproduzindo o sistema todo. Sem tantos reforços em tantos lugares, eu não aprenderia tão bem a mensagem. Foram familiares, professores, histórias em livros, na televisão e amigos repetindo padrões que nem fazem sentido pra mim, mas implantam aquela dúvida: será que eu sou a pessoa errada?

Sim, por ser mulher eu já sou sempre a pessoa errada. Não posso ter vontade de nada sem sentir culpa, não posso ser feliz com meu corpo sem sentir culpa. Uma vez falei que achava minha bunda ok para uma colega na aula de educação física e ela acabou comigo. Eu sabia que não tinha uma bunda de dançarina de axé, mas estava bem com isso. Parece que não era permitido estar. Eu tinha que odiar meu corpo todo.

Mas o principal é que por ser mulher eu tinha que lembrar que todas as outras opiniões eram mais importantes que a minha. Dos mais velhos, porque eram mais vividos e experientes. Dos mais novos, porque eram mais puros. Dos homens, porque eram mais racionais. Da minha família porque me conhece bem e sabe do que está falando. De quem nunca tinha me visto, porque poderia ser imparcial. Eu nunca seria a pessoa que saberia o que é melhor pra mim, ou que saberia de alguma coisa, afinal por ser mulher, eu me distrairia com meu cabelo. E quando eu não penteava bem o suficiente, eu era desleixada.

É uma cilada!

Essa semana uma amiga muito queria perdeu sua avó. Eu só conheci uma das minhas avós, mas ela faz falta. Sonhei com ela essa noite. Estava a família reunida pra comemorar alguma coisa e eu tava preocupada em fazer um bolo pra minha vó. Que ela tinha pedido. Minha vó não pedia muita muita coisa pra mim, só pra trocar a Telesena nos Correios e pra buscar coisa no mercado. Mas eu passei o sonho todo preocupada com o tal do bolo. Se minha prima ia fazer, afinal era sempre ela que fazia sobremesa.

Em algum momento, no sonho, lembro que minha vó já tinha morrido. Aí percebo que estou sonhando e fico chateada por ter me preocupado tanto com fazer um bolo e menos em aproveitar com ela. Porque pra mim, sonho é uma oportunidade de curar as saudades de quem já foi.

Agora, acordada, fico pensando nessa dinâmica de cumprir deveres e sentir que estou perdendo a vida. É um ciclo, estou sempre tão condicionada a cumprir regras, que sinto que perco parte do que é importante pra mim. A fazer o que é corretíssimo, sem levar em consideração o que estou sentindo, enfim, uma bagunça que nunca vai se resolver, porque a vida não é lógica.

Eu não tenho que me preocupar o tempo todo se vão ficar chateados, se a minha vírgula está fora do lugar, se eu fui inapropriada. Incrivelmente, sei que minha vó viveu a vida assim. E incrivelmente acho que eu só era mais livre com ela, porque de certa forma, ela entendia o que me doía.

Sem santidades

Minha vó foi uma ótima vó. Não posso falar nada sobre outros papéis na vida dela. Mas vó, foi maravilhosa. Escondia minhas travessuras, me apoiava quando eu ficava com vergonha de alguma coisa, me dava colo. A gente assistia Supermarket de tarde, ela fazia doce de leite, bolo de laranja e café.

Eu viajava só com ela às vezes, nas férias, caia, dava uns sustos. Mas ela tinha uns bonecos chineses que eu achava incríveis. Em cima da penteadeira. Minha vó tinha penteadeira, com perfumes, bibelôs e pó de arroz. Achava o máximo.

Achava incrível também que ela tendo estudado tão pouco fosse tão boa em matemática. Lembro dela me ajudar na tarefa certa vez e isso é coisa rara, eu nunca fui de pedir ajuda com tarefa. Mas na minha cabeça, ela gostava de matemática.

Sei que ela não teve uma convivência muito fácil com as pessoas que nasceram antes. Mas não posso falar sobre os outros. Posso falar da lembrança de chegar, cutucar na cintura e ela se assustar com pulinhos toda vez.

De certa forma, uma grande parte da influência cristã veio da minha vó. Ela que tinha muitos medos, adotava muitos símbolos e tal. Mas não parecia muito preocupada com isso quando aguentava eu falar por horas. Acho que é porque naquele momento, ela não tinha obrigação. Minha mãe diz que é porque nós duas éramos diferentes do resto da família — que a gente era da realeza. Pelo jeito, sobrei.

Teatro

Ontem assisti uma peça que me lembrou de outro amigo querido, que já se foi. A peça se chama Norma e é do começo dos anos 2000, os atores são maravilhosos. Nívea Maria e Rainer Cadete, atuações ótimas, emocionantes.

O enredo traz a questões muito atuais de relação em família, entre pais e filhos, aceitação e tal. Eu já vi essa história tantas vezes e infelizmente ela ainda vai se repetir. Na peça, a solução é bonita, mas na vida, nem sempre. É triste.

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Gabi

E lá vamos nós! Terra do Nunca? Bad Place? Certamente atravessamos o espelho.