Tradicional

A cozinha italiana e as invenções culturais que entendemos como verdade.

Gabi
4 min readAug 14, 2024

Existe um estudioso, nascido perto de Verona na Itália, que ficou famoso por quebrar conceitos sobre o que seria a comida italiana, das nonnas. Alberto Grandi escreveu o livro As mentiras da nonna, que estou com vontade de ler pelo simples fato de acabar com mitos culinários.

Adoro coisas que desmistificam mitos pelo simples fato de que me incomoda a ideia de que um grupo restrito possui um saber que deve ser mantido como segredo. E mais, que toda e qualquer variação é considerada imediatamente um erro. Pois bem, na culinária isso é bem comum.

Lembro que certa vez uma tia disse que um estrogonofe feito por outra pessoa nunca seria um estrogonofe pelo simples fato dela ter cortado a cebola em pedacinhos bem pequenos. Sim. O problema para essa tia era a cebola, que, segundo ela, deveria ser cortada em pétalas. O termo nunca será virou um meme da família.

O principal é que a referência era uma receita brasileira, de um livro dos anos 1970 (acho) e muito longe da receita russa. Olha só a hipocrisia.

Voltando ao livro, ele mexe com algumas instituições italianas. A pizza e o carbonara devem ser as mais comentadas. Ambos teriam muito mais influência norte-americana que um defensor das tradições gostaria de admitir.

Pureza e nostalgia

A ideia de haver uma receita original, de um passado que foi melhor, faz parte de uma romantização da vida. Aqui no Brasil isso ainda é alimentado por famílias de diferentes origens, filhos de imigrantes que talvez nem tenham mais alguma influência real do país de origem, mas que preferem se dizer europeus — como se isso os fizessem melhores que o resto dos brasileiros. Junto, está a nossa famosa síndrome de vira-lata.

No Brasil, quem não é descendente de imigrante é povo originário, e vamos dizer que os imigrantes sufocaram quase todos os povos originários, o que faz desses europeus pessoas não tão legais. E se o seu racismo faz você achar que a cultura europeia é superior à cultura africana, sul-americana ou asiática, melhor ir estudar. Isso é uma construção social pra justificar tudo de errado que foi feito no passado.

E se essas justificativas são usadas para apagar os crimes do passado, elas também são usadas para tentar elevar a culinária dos dominantes a um status superior. Agora, vai dizer que a técnica para lidar com a mandioca brava não é sofisticada? Ou que a pipoca não é um fenômeno espetacular?

Outro problema é a limitação que essas convenções culturais criam. O estereótipo mais comum da culinária italiana é feito de massa, molho e queijo. Mas o tomate é uma fruta da América do Sul e só chegou na Europa nos 1800s. Ainda assim, tem quem queira dar todo o direito de imagem dos tomates aos italianos.

Outro dia vi uma trend em que a pessoa falava que não tinha o paladar infantil, tinha o paladar italiano. Mas veja vem, esse paladar que alegava ser italiano estava longe da cultura de comer muitos legumes e peixes, com azeite, limão (importado da cultura asiática) e ervas. Afinal esse conjunto não se relaciona com o paladar italiano do estereótipo.

Guerra com o mundo

Um comentário muito comum é que, ao misturar culinárias de tantas origens diferentes, o Brasil estaria ofendendo diferentes países ao mesmo tempo. Sim, vemos bizarrices todos os dias. Pizza de estrogonofe, Burrito de sushi, Croissant de frango com Catupiry.

Mas qual país pode dizer que pegou uma tradição culinária de outro lugar e não adaptou? A Itália levou o macarrão da China pra fazer um preparo bem diferente. Vai falar que o macarrão de receita chinesa não é bom? Ou que estrogonofe com batata palha é um erro? Só são diferentes.

A interação entre as culturas faz a gente descobrir novos sabores, novas receitas. E no final, o que está sendo usado de base pode se manter vivo na memória pelo simples fato de a gente não ter desistido por falta de um ingrediente.

Não é só culinária

A gente tá vivendo um período de forte valorização de tradições, uma forma de escapismo da realidade difícil. Quando isso acontece existe um risco real de romantiza o que nunca foi tão bom, como o modo de vida tradicional, com papéis de gênero bem delimitados. Homens provedores e mulheres submissas, sem espaço para quem não se encaixa no padrão. Ser LGBTQIAP+ ou não ter vontade de ter filhos estariam fora de questão.

A quem interessaria esse engessamento todo? Eu acho que só pra quem fica confortável no acordo, pois na vida real é violência e maior desigualdade social. E essa rigidez de pensamento, que hoje nem parece tão grave na culinária, afinal se justifica que estão defendendo uma certa qualidade, esquece que nem todo mundo tem acesso aos mesmos produtos. O discurso com tempero esnobe sobre a pureza da receita esconde uma certa diferenciação de privilegiados.

Ser descendente de uma família x, poder visitar o país y, conseguir aprender técnica z. Esquecendo que para muitos a questão é conseguir colocar alguma coisa no prato sem ser humilhado.

Equilibrando o tempero

Talvez o texto até aqui tenha ficado um tanto amargo, então preciso dizer que o problema não são as receitas tradicionais. Elas são famosas por serem deliciosas, nada de errado com isso. O problema é transformar tudo o que é diferente em erro. Seja receita, papel de gênero ou corte de cabelo.

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Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.