Toda modéstia é falsa
Ser mulher é conviver com o fato de que se está sempre errando e que, mesmo se acontecer de acertar alguma coisa, não é permitido ter a satisfação com a conquista. Na verdade, nem toda mulher tem essa doença da preocupação em agradar, mas a maioria cai nessa cilada.
Falar que é cultural, um fenômeno sociológico não basta. A gente pode até entender isso, mas o caminho até se livrar dessas amarras é enorme. São sessões e sessões de terapia na busca por equilibrar: estar fisicamente dentro do padrão, ser médio-inteligente, querer ter filhos, ter um a carreira incrível, uma casa sempre arrumada, e comer batata frita sem engordar. É esperado que a mulher seja um ideal superhumano, e principalmente, que mantenha uma certa ingenuidade, pois ter consciência das próprias façanhas estraga tudo.
Você tem que ser simples, divertida e desapegada. E para quê?
Ainda que uma mulher consiga alcançar esse ideal, não haverá louros de vitória. Ela será questionada, duvidarão de sua motivação. E se para os homens pensar não é pecado, a mulher que pensa já errou. Simples assim.
O diabo são os outros
Eu tinha uma amiga que sempre fazia um teatro de simplicidade, como se apenas quem se colocasse como ignorante (no sentido de não ter conhecimento mesmo) pudesse ser considerado uma boa pessoa. Seu teatro incluía muitas preces e o reforço de que não ligava para aparência. Todo mundo conhece alguém assim, em maior ou menor grau. Pessoas perfeitamente falsas, pois estão mentindo para si mesmas. E eventualmente para os outros.
O truque é que a aparente falta de vaidade deixaria a pessoa ainda mais bonita. Como se não fizesse nada para isso, e portanto, o resultado fosse natural de alguma forma. Se faz jejuns, eles são para alma, não para emagrecer. Se aceita passar por agressões, é por uma questão de bondade no coração, e não uma necessidade patológica de agradar. E quando fala da própria qualidade é para dar exemplo, não por, bem, vaidade.
Eu poderia tentar me excluir dessa história, mas a verdade é que não tem como. Como mulher, fui catolicamente criada para performar uma certa modéstia. Um elogio sempre é respondido como uma negativa, uma espécie de incredulidade.
Meu marido me acha bonita? Ah, é porque ele me ama. Ou por querer alguma coisa. Nunca vai ser por ele realmente ver beleza.
Minha mãe me acha inteligente? A lógica é a mesma. A última hipótese sempre vai ser que eu realmente seja inteligente, o elogio sempre é infundado.
A vaidade é, definitivamente, meu pecado favorito!
O Advogado do Diabo é um dos meus filmes preferidos, pelos atores, pela história, pelas frases de impacto e a falta de resolução que propõe. Sim, ele tem muitas coisas questionáveis hoje, mas me ajudou a entender porque sempre duvidei da modéstia.
Dentro do meu círculo de pessoas, percebi a modéstia como um remendo de vaidade. De não querer apenas se destacar, mas também de parecer que não liga e está acima disso.
Mas a verdade é que mesmo não querendo aceitar um elogio, eu quero ser elogiada. E não sou a única nessa dinâmica doentia. Parece que essa é uma obrigação feminina para não ofuscar o frágil ego masculino.
Uma mulher confiante não é feminina o suficiente para nossa cultura. Talvez isso explique a valorização da juventude. Não saber, não ter consciência, é útil para quem domina. A inocência. Mil coisas.
Tá confuso, tá.
Depois de pensar no assunto, lembrando que eu provavelmente escrevo dentro de uma certa rigidez cognitiva, não tenho nenhuma solução para propor. Estou tentando fugir da modéstia, não sou uma pessoa que deseja passar despercebida a vida toda.
Sem contar que quando a gente não valoriza quem é ou o que sabe fazer, ninguém vai valorizar o suficiente. O salário vai continuar sendo mais baixo, o outro vai continuar achando que tudo bem dar menos que recebe. Ao fingir modéstia, criamos regras que não vão nos fazer bem por uma vaidade que muitas vezes não percebemos que existe.
E nos magoamos com pessoas que aceitam livremente serem bonitas, interessantes ou inteligentes. Sim, porque é comum começar a achar que a outra deveria cobrir mais o corpo, parar de constar sobre suas viagens ou ficar feliz porque foi muito bem em uma prova. É um julgamento que vem da dificuldade em lidar com a vida, uma certa inveja da liberdade alheia. Uma forma engenhosa em que nos mantemos aprisionados por tempo demais em mentiras que achamos serem necessárias — mas não são.