Sobre um bolo no meio da tarde

Gabi
4 min readDec 11, 2024

--

Quase toda semana a conversa sobre viver uma vida de dona de casa tradicional surge na pauta. E toda vez eu tenho que me segurar para não fazer umdiscurso sobre patriarcado, afinal tenho uma dificuldade enorme em simplesmente deixar para lá.

Meu bolo pode ser num café superfaturado mesmo.

Nessa semana mesmo, não falei nada, mas estou tendo que escrever aqui para organizar minhas ideias.

Bolo à tarde

Bem, em algum dos posts, ou tirinhas, ou conversa que tive essa semana, tinha a frase:

Quando foi que a gente achou que seria melhor deixar de assar um bolo à tarde para ir trabalhar.

Não estava exatamente escrito dessa forma, mas dá pra entender o contexto. Enfim, eu queria conseguir só rir e seguir em frente, mas fico pensando no assunto. E tem muita coisa.

  1. Independência: não fico confortável com o tal do modelo tradicional. A gente vive em uma sociedade capitalista, em que só quem tem dinheiro tem voz. Ser dependente financeiramente, significa não ter para onde ir se o marido se tornar violento, abusivo ou se simplesmente o amor acabar. O cara vai se achar no direito de falar mais alto, pois está pagando. (Sim, essa frase foi proposital.)
  2. Trabalho doméstico: se limpar a casa fosse uma coisa suave, ninguém teria faxineira, mas o trabalho de cuidar de uma casa não é reconhecido como trabalho. Você acha que depois de faxinar a casa e passar roupa, além de árias outras pequenas tarefas que se empurram para uma dona de casa, vai ter disposição para fazer um bolo e assistir uma série? E se você tiver filhos? Quem pensa que a vida é esse moranguinho, provavelmente vive uma realidade financeira privilegiada. Imagino que algumas pessoas já estão pensando no — mas eu trabalho fora e tenho que fazer tudo isso. Então, você não tem. É uma escolha: você faz porque o cara não quer fazer a parte dele e estamos consicionadas a isso.
  3. Satisfação pessoal: tem quem sonhe em ser dona de casa, se esse for o seu caso, o texto todo não vale. Eu tenho vontade de conhecer outros países, experimentar comidas diferentes, aprender idiomas. Usar roupas interessantes, correr mais de 100 metros sem colocar o coração pela boca, tomar um brunch com as amigas. E pagar com o meu dinheiro, sem dar satisfação sobre como estou gastando.

Pensa, Gabriela, pensa.

Certa vez, li uma anetoda em que uma feminista branca falava que lutava pelo direito de poder trabalhar e as mulheres negras falavam — mas a gente sempre trabalhou. É recorte social. Não dá pra ser ingênua.

A gente sabe que a história é cíclica e atualmente o conservadorismo tá em alta. Ser uma pessoa conservadora significa manter as coisas, conservar as coisas como estão. Eu não acho que estão bem, mesmo tendo alguns privilégios. Até porque privilégio é uma coisa que pode sumir em instantes. Esse discurso de mulher tradicional é sob medida para tirar direitos como se fosse uma grande brincadeira.

Nessa coisa de ter que ser mais conservador, estão tentando proibir os abortos mesmo quando a gestante ainda é uma criança. Querem também proibir os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, fingir que o planeta não está aquecendo para favorecer o agro, privatizar praias. Deixar as pesquisas de medicamentos só com as farmacêuticas, que vão cobrar milhões em caso de doenças raras. Privatizar tudo, afinal as empresas não dão lucro.

Empresas de serviços básicos não têm que dar lucro, a gente paga imposto para que elas funcionem. E nos países capitalistas mais desenvolvidos elas não são tão privatizadas assim.

Ser uma mulher tradicional e conservadora é deixar as decisões difíceis para os homens. Você acha que eles vão escolher o que é melhor pra você? Eu acho que não. E nem é só por maldade, é por uma questão da visão de mundo deles. Sem a gente falar do que precisa, do que é importante pra gente, nem tem como eles saberem. Obviamente, a maios parte de quem fica apoiando o discurso very demure das mulheres tradicionais não é inocente. Existe intenção.

Qual é a intenção?

Veja bem, somos mais da metade da população, e mesmo com as cotas, ocupamos menos postos de governo e cargos altos em empresas. Se a gente ficar sendo fantoche do tradicionalismo, a homaiada continua fazendo o que quer. A gente continua sem ser considerada em pesquisas de saúde, produção de carros, necessidades cotidianas. O assédio moral e sexual pode continuar. Quem for rico ou tiver um pouco de poder continua acumulando dinheiro e poder, enquanto a gente continua vivendo a tal da escravidão remunerada, sem um transporte público decente, com policiais desacreditando nossos depoimentos e planos de saúde negando tratamento.

Ser uma mulher tradicional, ou apenas achar engraçadinho, imputa o risco de criar uma sociedade cada vez mais rígida, em que você não pode questionar nada, melhorar nada. Já passei do tempo de achar que é só uma piadola sem consequência. O Pânico na TV e o CQC mostraram que não existe piada sem consequência, e eu nem gostava dos programas.

Mais leve

Não acho que eu tenha esgotado tudo o que minha cabeça pensou sobre o tema na última semana, mas sim, escrever me dá um grande alívio. Mas será que eu sempre poderei escrever? Ou vou num futuro distópico precisarei de permissão do meu marido?

--

--

Gabi
Gabi

Written by Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

Responses (1)