Sem ar

Gabi
6 min readJan 18, 2021

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Um fim terrível que está longe de acabar

Você pode não assistir jornal, talvez você nem entre em site de notícia. Algumas pessoas marcam para não receber notícias sobre a realidade em seus feeds e, outras, maratonam séries sem parar, refugiando-se na ficção. Talvez livros, talvez exercícios físicos e talvez até viver como se nada tivesse acontecendo.

Imagem de cottonbro para Pexels

Mas a verdade é que a vida acontece à revelia das suas vontades. Já é assim normalmente e, desde março do ano passado, tem sido mais de uma forma mais intensa. A vida vai acontecendo mesmo que a gente finja que não, alegando que tudo é fake news.

São tempos difíceis, talvez não para os bilionários, esses estão ficando mais bilionários que nunca e fazem festas em ilhas particulares, mas para o resto da humanidade, são tempos difíceis. Quando o tempo fica difícil para mim, eu tenho dificuldade em respirar. É um dos sintomas da minha crise de ansiedade, minha respiração fica mais curta e não oxigena direito meu sangue. Logo, eu vou deixando de pensar com clareza e entrando em parafuso.

O Brasil é o país mais ansioso do mundo, dizem as pesquisas. Nem todos os ansiosos tem os mesmos sintomas que eu, mas acredito que boa parte deles tenha sentido uma piora de março de 2020 para cá. Pandemia, isolamento social, medo de morrer, de perder pessoas queridas, de ficar sem emprego, da vida nunca mais ser boa, não não viver um grande amor, de nunca mais beber uma cerveja gelada em um boteco sujo, de ir ao cinema, de comprar coisas que não precisa e que vão estragar rápido em lojas modernas que superfaturam tudo, por aí vai. A ansiedade cria uma urgência por coisas que a gente nem sabe distinguir se são realmente necessárias.

Tem ansioso que faz exercício de respiração, meditação, esporte. Tem ansioso que faz terapia, toma remédio, outros se automedicam, mas não aconselho. Tem que coma muito, beba muito. Não faz bem, nem preciso falar. Sim, tem ansioso de todo o espectro de inteligência.

Lembranças

Há alguns anos, minha madrinha teve câncer no pulmão. Não sei se vocês estão familiarizados com a doença, mas quando o câncer acontece no pulmão pode ser muito traiçoeiro. Vai se desenvolvendo por um longo período sem dar sinais de presença, causar dor, até que esteja tão grande que se torna intratável.

Meu padrinho desconfiou que minha madrinha tinha câncer no pulmão quando ela ligou o ventilador no rosto pra ver se conseguia respirar, pois estava sentindo falta de ar. Ele não é médico, mas na mesma hora desconfiou da doença, pois já tinha perdido um familiar que havia apresentado o mesmo comportamento.

Assim que ela foi internada, eu peguei o primeiro ônibus fui visitá-la. Quando cheguei, ela já estava sedada e nunca mais ficou consciente. Nunca mais respirou sozinha e meu padrinho chorou muito contando sobre como era triste ver a pessoa puxar o ar e não conseguir respirar.

Más decisões

A ansiedade em si é uma má conselheira. Mas a gente aprende na escola que a Idade Média foi conhecida como Idade das Trevas e nessa época a religião se confundia com o Estado. Também aprendi que apenas países atrasados misturavam as duas coisas. Pois é, Brasil, que já foi considerado o país do futuro, entrou nessa de Deus acima de tudo. Idade das trevas, país atrasado.

Eu vou colocar parte da culpa na ansiedade, porque tem aquela coisa de querer resolver logo e escolher qualquer coisa. Aí se escolhe o que parece ser o mais diferente possível — mesmo que seja uma escolha burra. Tem muita gente que ainda está agarrada nessa justificativa. Nem tenho nada contra Deus, entidade, mas a tradução que fazem aqui na Terra é bem corruptível.

E os cristãos, olha, cristão brasileiro em particular, o que bate no peito, é aquele ser que quer forçar você a seguir o mesmo que ele fazendo tudo ao contrário de Cristo. Uma decisão pior que a outro, com orgulho de ser ignorante. Não dá pra mim, desculpa, mãe.

Eu tinha a impressão

Nas crises de ansiedade eu tinha a impressão que o ar ia faltar, o coração ia parar e eu ia morrer. É horrível, mas a gente se recupera. Na pandemia atual a falta de ar não é impressão.

O ar falta de verdade. Falta oxigênio.

Entre muitas decisões erradas que nossos governantes tomaram, apoiados por seus eleitores, em quase todas as vezes, acho que nenhuma foi tão avassaladora quanto deixar acabar o oxigênio em Manaus. Não é o começo da pandemia quando ninguém sabia ao certo o que deveria ser feito. Já sabemos o que é importante.

Não precisamos especular onde foi o erro, existem documentos que desmentem as mentiras contadas pelas redes sociais. Indicação do uso preventivo e ineficaz de medicamentos como a cloroquina, rechaçado por cientistas no mundo todo, foi gasta uma verdadeira fortuna com isso, mesmo depois que já havia sido provada a ineficácia dos tratamentos. Vista grossa aos avisos de uma iminente crise na saúde do Amazona, deixando o pior acontecer por motivos políticos.

Alta de imposto para importação do oxigênio. Agora ele já foi zerado novamente, mas né? Estrago já foi feito, quem morreu não pode mais ser salvo.

Peixe fora d’água

Eu sempre me descrevi com essa imagem. Afinal, não me encaixo muito bem entre a maioria, nunca fui uma pessoa muito padrão, gosto de estudar, hoje tenho cabelo grisalho apesar de ainda ter apenas 40 anos e, segundo as regras sociais, devesse estar me esforçando ao máximo para aparentar ter 30.

Mas depois de todas as descrições sobre como foram os últimos instantes das pessoas que morreram de Covid-19 em Manaus, por falta de oxigênio, acho que é injusto usar essa figura de linguagem. É desrespeitoso com a história dessas vítimas e de seus familiares. Pessoas se contorcendo sem conseguir respirar, porque o pulmão não tinha capacidade de absorver oxigênio do ar como a gente faz e nem percebe.

Imagem de Pixabay

Entre sufocamento e afogamento, a sensação deve ser horrível, pior que qualquer crise de ansiedade que já vivi. Imagino que seja equivalente ao que minha madrinha passou, então penso em cada um dos familiares como o meu padrinho, desolado por não ter o que fazer. É cruel e desumano o que esses governos fizeram para deixar as coisas chegarem a esse ponto. É revoltante e os outros políticos, que só assistem e dão notas de repúdio, são cumplices. Também estão matando todas essas pessoas.

Indivíduos

Eu sinto falta do mar. Do cheiro do mar e da sensação da areia molhada sob meus pés. De mergulhar e brincar na água. De ficar boiando. De andar entre as pedras, passar pela parede que da choque — sem levar choque. Chegar em casa cansada e ver todas as coisas que minha mãe quiser mostrar. Desmaiar por duas horas e acordar pra beber cerveja, vinho ou caipirinha e comer churrasco com um monte de gente.

Sinto falta de sentar em um boteco. Pedir batata frita. Provolone à milanesa. Ir pro Karaokê, onde eu vou mais rir que cantar, afinal sou introvertida. Mas gosto de estar com as pessoas. Talvez eu fique até o final, talvez não. Não importa.

E tem a vontade de sair, dar uma volta por aí, sentar em um café qualquer, ler um livro. Descobri uma exposição. Combinar o cinema de última hora. Ou ir pro boteco mesmo, tanto faz. Já sei, vamos todos lá pra casa, fica mais barato, a gente pede uma pizza.

Mas não dá. Não tem como ter certeza de que estamos seguros. Talvez dê para fazer uma caminhada no sol e se você morar na praia, talvez tenha esse privilégio. Mas para mim, não tem praia ou boteco. Tem espera. A ansiedade é grande, mas a falta de ar que ela causa eu sei como lidar.

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Gabi
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Written by Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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