Quem me conhece, sabe…

O futuro é certo, enquanto o passado muda o tempo todo.

Gabi
4 min readAug 26, 2024

Enquanto eu estava na faculdade, tive alguns debates co meus colegas sobre a suposta imparcialidade que o jornalismo tenta imprimirem suas produções. Eles tinham uma visão romântica de que era possível noticiar qualquer coisa de forma neutra, sem impor juízos de valor. Enquanto isso, eu sempre acreditei que toda escolha implica em criar um viés.

Falando de uma forma mais simples, toda vez que a gente vai escrever, fotografar, transmitir ou montar o layout de uma página, a gente está colocando o que aconteceu sob um ponto de vista.

Ter consciência de que esse ponto de vista existe é importante para entender o contexto e conseguir analisar as coisas. Se um vegano me fala alguma coisa sobre carne, eu sei que a chance de pesar a mão no que for negativo é maior. Se um empresário falar de leis trabalhistas, se que posso esperar que ele esteja buscando a vantagem para ele e não para os empregados.

Em um veículo de mídia a coisa é um pouco mais sofisticada, porque a relação entre o veículo e as outras áreas da vida pode ser mais complexa. Mas ela existe, de modo que a imparcialidade aqui é uma ilusão.

Vamos imaginar que…

Quando alguém conta uma coisa para outra pessoa, a relação é parecida. As interferências provavelmente não acontecerão para favorecer comercialmente, e na maioria das vezes ocorrem de forma não intencional.

Sem querer a pessoa vai colocar em seu relato um pouco de seus preconceitos, um tanto de sua vivência. Vai procurar validar suas ideias sobre certo e errado, além do que tem de autoimagem. Ao fazer um relato, sobre o que aconteceu no trabalho ou na escola, pode tentar parecer mais esperta ou mais paciente do que é de fato. E, atenção, não estará fazendo isso por maldade, pelo menos não sempre.

Sempre pode ter um tom de voz, uma levantada de sobrancelha, reticências estratégicas. Coisas que talvez nem tenham sido planejadas, mas vão dar um viés, uma emoção para o assunto.

Sem contar que existem outras influências ainda mais subjetivas. Pense no assunto que estava sendo comentado antes ou a hora do dia. Esses detalhes têm a capacidade de mudar o viés do que é apresentado, a predisposição do receptor a interpretar o que recebe de formas diferentes. Tudo influencia um relato.

O futuro é certo, enquanto o passado muda o tempo todo

Nesse fim de semana minha mãe comentou que eu nunca gostei muito de dançar, mas sempre dancei um pouco. Entre o choque de ouvir isso e as inúmeras lembranças de infância, fiquei quieta tentando entender o que estava acontecendo. Sim, a minha infância é incrivelmente diferente para mim e para minha mãe.

Já tinha acontecido um estranhamento quando ela falou que eu não quis fazer ginástica olímpica e fiquei na natação. Lembro muito claramente de querer fazer as duas coisas, mas preferir ginástica olímpica e me falarem que não tinha como fazer na minha cidade. Então tudo bem, se não tem, faço natação.

Agora isso da dança. Não faz o menor sentido. Eu dançava todos os dias, a tarde toda. Inventava coreografia, fazia as outras crianças brincarem de balé comigo. Quis muito fazer aulas de jazz e era muito boa, a ponto de a professora achar que eu já havia feito aulas antes e me colocar junto com as alunas avançadas.

Meus pais foram em alguma apresentação? Não. E me tiraram quando tive que mudar de horário na escola.

Depois, um pouco mais velha, fiz aulas de flamenco e dança do ventre. Treinava todos os dias. Dessa vez deixei de fazer aulas quando passei no vestibular e mudei de cidade. Mas continuava dançando muito em casa.

Bem, toda essa explicação sobre dança é pra exemplificar que minha mãe não me conhece de fato. Ouvir que nunca gostei muito de dançar foi dolorido de uma forma que nem dá para entender direito. (Dá-lhe terapia)

A cada conversa eu percebo que o passado muda um pouco. Eu não fiquei brigando para continuar nas aulas de dança quando criança porque entendia que se uma coisa não vai dar, seja por falta de dinheiro, de tempo ou qualquer outro motivo, brigar era inútil. Hoje percebo que o não vai dar, quando é relacionado a uma coisa que a gente gosta muito, precisa engatilhar uma reação mais intensa. Ou a gente se passa para trás.

Se passa para trás porque o fato de não ter uma reação mais enérgica, faz com que o outro ache que você não se importa tanto assim. Enquanto isso, eu não queria ser um problema, então era boazinha. Estava triste por perder uma atividade que gostava tanto, mas não queria que meus pais ficassem tristes, então levava numa boa.

Alguém tem culpa?

Difícil responder isso. Quando se trata de lembranças, tudo muda o tempo todo. O que a gente se lembra vai ser um recorte do momento que passou misturado com o momento atual. Nada é objetivo.

As coisas que eu achava que quem me conhece saberia, não são as coisas que pensam que sabem de mim. Para o bem e para o mal.

--

--

Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.