Porta fechada, enfim só. Hora de tentar usar o celular. Acessar a internet ou tentar ligar para alguém? Nenhuma mensagem havia chegado, nem nos aplicativos. Nem de clientes. Nem dos contatinhos. Eu estava até com saudades de reclamar da falta de sossego. O que estava acontecendo com a minha vida?
Em menos de 24 horas muita coisa estava diferente. Eram apenas 24 horas mesmo? Não soube de nenhuma revolução em curso, não vi nenhuma explosão ou destroço. Não li nenhuma notícia muito fora do comum, apenas mais do mesmo. Políticos corruptos, polícia corrupta, cidadãos apáticos, criminalidade latente, festas esporádicas, vida normal. Ah, tentar ligar para alguém.
— Be. Atende filho da puta. Alguém precisa me situar disso tudo. Tu, tu, tu e nada.
— Lu? Oi! Acabei de voltar e…ah, não pode falar agora?
— Telefone não existe… Como não existe? Ligo pra essa biscate dia sim e outro também.
Restou falar com a chefe, fazer o quê? Que preguiça. Mas eu teria que falar com ela de qualquer forma. A essa altura nem sei se seria bom ou ruim escutar suas reclamações sobre o mercado de produtos de higiene feminina e sobre como somos incompetentes em cumprir suas ordens. Ela vai ameaçar me demitir de novo ou eu vou pedir demissão antes?
Renatinha tinha sido minha melhor amiga na faculdade, mas nesse ponto da vida a amizade tinha virado burocracia. Para ser reconhecida como a melhor de qualquer coisa, ela deixou seus valores de lado e nós nos afastamos afetivamente. Eu tentei trabalhar para outras empresas, mas para ganhar sempre (e isso é absurdamente importante), ela achava fundamental que eu estivesse na equipe. Mesmo que nós brigássemos praticamente todos os dias.
- Oi, inha. Desculpa a demora em ligar, mas as coisas estão meio confusas. Me mudaram de casa, falaram que eu tenho um novo emprego. Você teve coragem de me demitir sem nem falar comigo? Por um acaso, você sabe alguma coisa disso?
Silêncio. Uma respiração profunda. Espero uma reclamação sobre meu comportamento. Espero uma sequência de gritos. A voz baixa de quem havia perdido a alma matou um pouco mais da pessoa que eu conhecia.
- As coisas mudaram bastante. Não foi decisão minha, mas a verdade é que você não trabalha mais para mim. Obrigada por tudo. Tenho que desligar.
E isso foi tudo o que consegui saber da minha ex-melhor amiga que virou ex-chefe e agora era apenas uma voz conhecida. Quer dizer, eu não reconhecia muito bem essa voz que falou comigo. Cadê a alma?
- Inha, desculpa insistir, mas eu não estou entendendo nada. Caralho, gata. A gente se odeia, mas se ama. Sempre foi assim.
- Você ainda não se deu conta de que as coisas mudaram de verdade? Não somos mais as mesmas. Nada mais é igual. Estamos vivas, fique feliz por isso. E não me ligue mais.