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Gabi
3 min readFeb 10, 2020

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Não que eu tenha medo de viajar de avião, até porque eu durmo quase o tempo todo, mas falar que eu estou perfeitamente bem depois de 12 horas de viagem é um grande exagero. Eu durmo, mas não descanso. Óbvio que é melhor que ficar acordada, mas eu sempre saio um lixo. Inchada, tonta, perdida, misturando idiomas que eu não domino.

Imagem: google.com

Voltar para casa. Por mais reconfortante que pareça a imagem mental que essa frase evoca, não é bem isso que vem à mente. Mil coisas para resolver. Uma briga para começar com o cartão de crédito que cobrou duas vezes a mesma taxa. A reunião com a chefe que a assedia sexualmente e não repassa suas comissões. Lembrar que não tem ninguém em casa me esperando dói de um jeito físico que evito com muita bebida. No começo eu fui exigente, agora eu já nem ligo, apenas bebo. Queria sentir aquela leveza da quem bebe um pouco e fica altinho, mas aqui a história é amortecer os sentidos e conseguir ir em frente.

O avião já está parado faz um tempo. O ar já está parado faz um tempo. As pessoas estão agitadas e aquela fila no corredor já está formada enquanto os avisos para manter os cintos afivelados ainda estão acesos. Duas crianças choram, um grupo de adolescentes começa a conversar de forma mais exaltada com o tom de voz subindo pouco a pouco. As senhoras atrás de mim reclamam da falta de informação, mas não perguntam nada à tripulação. Reclamam do ar desligado, das crianças chorando, dos adolescentes gritando, da cotação do ouro. Nenhuma garrafa à vista, vou ter que apelar para o comprimido. Um comprimido, fones de ouvido.

O efeito é rápido, estou melhor, mas não vejo nenhuma movimentação e com o relaxamento acabo cochilando no banco enquanto espero liberar o desembarque. Acordo com a comissária perguntando se eu aceito um lanche. Veja bem, minha memória não é muito confiável, mas nós já chegamos. Ah sim, estamos em terra. Mas teremos que esperar mais, novas ordens. Parece que alguma coisa aconteceu enquanto o avião estava no ar. Estranho, no mínimo.

O lanche é seco e sem gosto. O café, fraco. A energia está baixa e todos parecem estar entorpecidos. Para uma demora tamanha dentro do avião eu esperava por passageiros enfurecidos, espancando a tripulação, mas estavam todos bem-comportados comendo seus lanchinhos sem graça. Talvez seja esse perfume estranho, como alguém consegue usar um perfume tão doce?

Heis que as novas ordens chegam, sem um anúncio formal da cabine do piloto. Um senhor, muito bem vestido, entra e caminha pelos corredores.

“As coisas mudaram nas últimas 24 horas, por isso precisamos retê-los por este período. Nossas sinceras desculpas. Antes do desembarque, vamos atualizar as regras de convivência no país. Estamos sob nova direção. Suas bagagens estão sendo minunciosamente inspecionadas e todos precisarão passar por uma entrevista. Vocês serão chamados aos poucos, pelo nome. Estrangeiros também passarão por uma entrevista. Suas famílias e locais de trabalho já foram informadas desse atraso. Mais informações serão dadas nas próximas horas.”

Mais estranho que a própria ação é o fato de ser tudo tão eficiente. Podem estar mentido também. Será que nosso avião foi sequestrado por terroristas? Não faz muito sentido, mas nada faz. Estou criando mil possibilidades quando escuto meu nome.

Maria Luíza Magalhães.

Chegou o momento de descobrir o que está acontecendo. Sigo pela aeronave, pela escada, pelos corredores e o silêncio é enlouquecedor. Carrego minha bolsa nos ombros e estou feliz por esticar as pernas. Tudo parece igual, mas estranho. Não sei que horas são, mas acho que olhar no celular não é uma boa ideia. Parece que estou sendo vigiada. Melhor parecer despreocupada.

Pode entrar.

A sala é bem uma sala arrumada para um interrogatório, meu primeiro. Uma mesa, uma cadeira de cada lado. Um grande espelho atrás do senhor que vai falar comigo. Acho que o cara está usando maquiagem. O terno com certeza é sob medida, muito bem cortado. Pensei que o pessoal do aeroporto usasse só aquelas roupas mais ou menos, mas parece que as coisas mudaram radicalmente mesmo.

Não, esse senhor não é funcionário de aeroporto. Sorri com esse pensamento. E com o seguinte: fu-deu. Vamos pensar que a vida sempre foi estranha, mas esse dia está particularmente se superando.

Olá, Maria Luíza. Aceita uma água? Café?

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A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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