Personalidade
É, eu sei. Uma roupa serve para nos proteger das intempéries. Frio, calor, vento, o que seja. Mas isso era no passado longínquo, antes da invenção da tecelagem ou da Eva comer a maça, se você for desses.
Mas veja, já na pré-história quem conseguia uma pelo de leopardo devia se destacar de quem só conseguia peles de cor única. Sei lá. Na minha cabeça faz sentido.
Com o tempo, inventamos diferentes tecidos, modelagens e acessórios, alguns úteis, ou nem de longe. As aparências ganham relevância quando homens e mulheres se pavoneiam para serem mais respeitados, queridos, temidos, ou o que seja. A Igreja fala sobre humildade enquanto seus principais representantes se cobrem de ouro e veludo. Oscar Wild escreve que só os tolos não julgam pela aparência.
As mulheres são transformadas em objeto e, como tal, precisam se adaptar à aparência ditada como certa. Pele mais ou menos bronzeada. Quadris largos ou retos. Cabelos e depilação.
Quando se fala em roupa e moda, o foco quase sempre é no negativo, na imposição sofrida. Mas a roupa também é uma forma de expressão, ou ao menos pode ser. Acontece que em alguns momentos eu não sei o que quero expressar.
Dificulta o fato de eu não ser padrão. Pessoas magras encontrar muito mais opções. Só que não é um impedimento completo, afinal sei costurar. Mas não sei o que quero vestir.
Se quero uma coisa com jeito de executiva, se quero ser lady ou esportiva. Não sei se estou minimalista ou florida. Não me reconheço, não me encontro no que visto.
Essa não é uma sensação totalmente nova. Já vivi isso antes. Mas o que já foi resposta não faz mais sentido. O mundo mudou, eu mudei, a vida como um todo mudou. Quem eu quero ser agora? Igual, mas diferente do que fui até aqui. Ou mais parecida comigo o possível.
Não sei. Alguns decotes parecem que não são mais tão interessantes. Será que ainda quero usar saia midi? E a franja? Sim, as pálpebras estão cedendo da mesma forma que minha miopia. Cadê o brilho no cabelo?
Tem relação
Você pode estar se perguntando se a questão verdadeira é o envelhecimento. De certa forma sim, afinal o tempo passou e deu espaço para amadurecimento. Mas as mudanças internas estão mais fortes que as externas.
Não sei o que vestir, mas sei que sou neurodivergente. Sei que algumas coisas vão me incomodar mesmo. Como a sensação de que o batom está saindo da boca após comer alguma coisa, que me irrita e faz eu logo tirar tudo. Ou sutiã que divide o peito, fazendo marcas horrorosas sob a blusa. Ou minha barriga volumosa.
Ah, sim. As irritações podem se confundir com a falta de autoconfiança ou de amor próprio.
Isso não é o suficiente pra eu vestir uma burca ou só usar roupa preta, na ilusão de que eu ficaria mais confortável. Não vai acontecer. Gosto de formas e cores, o que inclui muitas blusas pretas, mas não torna a cor dominante no guarda-roupas. Acho que não sou ninguém sem jeans. Nem sem vestidos ou saias. Pronto, estou abrindo tantas opções que já perdi o foco.
Eclética
Uma das minha dificuldades é gostar de muitas coisas. Minimalismo e excentricidade, jeans e vestidos cheios de babados. Algumas coisas que gosto eu já sei que gosto nos outros, mas não em mim. Ainda assim, não me encontro.
Em um lugar que trabalhei ganhei uma consultoria de estilo e coloração pessoal. Diz que sou Inverno Brilhante e isso é bom, porque são cores que gosto e inclui preto. Na parte de consultoria de estilo não ajudou muita coisa, porque veio com aquelas velhas ideias de padronização que não levam em conta a minha personalidade.
Não que eu saiba exatamente como é a minha personalidade, mas uma consultoria de estilo tem que estar a favor da pessoa e não tentando moldar a pessoa às ansiedades do mundo. Eu não sou padrão, não adianta passar dicas padrão pra eu seguir. Essa dinâmica torta atrapalha ainda mais a busca por me expressar no que visto, pois as regrinhas aumentam a insegurança, e insegura a gente duvida que gosta do que gosta.
Enquanto não acho o que me representa, sigo na tentativa e erro, um dia após o outro. Mas, tudo bem. Amanhã tento me encontrar outra vez.