Para a vida toda

Gabi
6 min readJul 20, 2021

--

Esqueça romance, nossa realidade é outra.

Histórias de amor são lindas, nós gostamos delas. Nós queremos vivê-las e alguns de nós têm a sorte (ou seria a serenidade?) de tê-las em suas biografias. Elas podem ser curtas ou longas — para a vida toda, mas são raras. Estou vivendo a minha e digo que exige dedicação, demandam trabalho e são muito recompensadoras. Te amo, baby.

Mas antes de eu me apaixonar eu já tinha um relacionamento. Aliás, esse começou antes mesmo de eu me entender como gente. Sim, com ela, minha companheira fiel: a dor de cabeça.

Photo by cottonbro from Pexels

Personalidade

Já faz um tempo que penso sobre o quanto sentir dor de cabeça desde criança moldou minha personalidade. A necessidade de isolamento, a limitação quanto ao tempo que posso ficar no sol, calor ou frio. A busca constante por respostas e o entendimento que, às vezes, não existirão respostas. Será que a dor fez de mim uma pessoa mais paciente? Ou resiliente?

Resiliência: Habilidade que uma pessoa desenvolve para resistir, lidar e reagir de modo positivo em situações adversas.

Resiliência é dessas palavras da moda, que tem sido bastante explorada em livros de autoajuda, palestras de coaches e posts de LinkedIn. Quem tem enxaqueca ou se entrega ou aprende a achar um jeito de voltar ao seu caminho mesmo com a dor. Eu sempre tive orgulho de não ter deixado a enxaqueca me limitar e ter estudado, passado no vestibular. De trabalhar mesmo com as piores crises. Hoje acho que foi um erro ter me forçado tanto.

Eu sempre me preocupei em não tentar parecer preguiçosa ou parecer que estava usando a dor como desculpa, e veja bem, não adiantou. não respeitei meus limites, deixei que os outros não respeitassem e, eventualmente, fui/sou considerada preguiçosa. E quanto mais você se força na enxaqueca, mais a cabeça dói. As crises vêm em ondas e ondas até você perder o ar.

Para mim, os remédios funcionam e deixam de funcionar. Fiz exames e mais exames. Tratamentos que me fizeram engordar, que alteraram meu humor, que geraram frustração a cada vez que deram errado.

Sim, é verdade que faz muito tempo que penso em como ter muita dor de cabeça tem uma influência grande em quem eu sou, no meu comedimento de um modo geral, no meu medo de tudo que é demais. Só que mais recentemente comecei a ler sobre estudos que ligam enxaqueca a um universo de sintomas e características que confirmam minha experiência pessoal.

Ansiedade

“A implicação de não controlar a ansiedade no dia a dia, além de não relaxar facilmente, sentir-se ansioso e sentir excesso diário de preocupação devem ser melhor avaliados em pacientes com enxaqueca, tanto na população em geral quanto na prática clínica.” — Anxiety and depression symptoms and migraine a symptombased (Sintomas de ansiedade e depressão e enxaqueca, uma sintomatização. — em tradução livre)

A associação entre os quadros de ansiedade ou transtorno de ansiedade, e ainda de depressão, com a enxaqueca tem ganhado mais atenção dos cientistas. Sem todo o conhecimento científico, eu fico pensando se a enxaqueca me causa ansiedade ou se é o contrário (o trecho acima sugere um caminho em que a ansiedade leva à enxaqueca). Na minha experiência pessoal, a convivência com as crises de enxaqueca faz ora eu querer me programar para eventuais problemas ora eu tentar aproveitar ao máximo enquanto a dor não chega. O equilíbrio é um sonho quase tão distante quanto viver sem dor.

Photo by Nataliya Vaitkevich from Pexels

O estudo citado sugere que excesso de preocupação, medo e outros sintomas de ansiedade podem ser parte de quadro clínico de enxaqueca.

Para quem começou a ter crises de pânico e ansiedade, e considera que essas crises são o resultado de anos passando por cima de sinais do corpo falando pra ir mais devagar, faz todo o sentido. Conforme a enxaqueca piorou, o quadro psicológico foi junto. Sempre tive pra mim que ao melhorar de uma coisa, a outra iria junto. Parece que a intuição estava certa. Só não é tão fácil assim.

Chocolate e outros gatilhos

Tido como um alimento vilão para enxaquecosos, não é o tipo de alimento que me desencadeia crises. No entanto, excesso de açúcar sim, é um veneno na minha vida. Esses dias vi na televisão que a verdade é que a região do cérebro onde “nasce” a enxaqueca, também é onde “nasce” a vontade por chocolate. Então essa vontade de comer o doce seria um sintoma.

Para falar a verdade, não encontrei nenhum referência sobre o assunto. Mas os alimentos desencadeantes clássicos não costumam ser gatilho para minha dor. Agora, uma coisa é certa na minha vida: quando eu me alimento direitinho, de forma mais equilibrada, as crises diminuem muito. Mas é mais uma coisa de ser mais equilibrada que proibir um ou outro grupo.

Obesidade

Segundo a Sociedade Brasileira de Cefaleia, tanto a obesidade quanto a subnutrição favorecem a dor de cabeça. Acontece que meu último aumento de peso significativo aconteceu por conta do tratamento para ansiedade. Na época concordei com a psiquiatra que o controle da crise era fundamental e deixei a coisa seguir como estava. Crises controladas, não engordei mais, mas também não emagreci.

Mesmo com a gama de medicações disponíveis para o tratamento da enxaqueca, vários pacientes não terão uma melhora significativa na frequência e gravidade das dores de cabeça, a menos que façam modificações no estilo de vida, as quais incluem mudanças na alimentação, e como consequência o emagrecimento.

Na minha experiência, isso faz todo sentido. Mas como mudar? Claro que existe uma questão de força de vontade, decisões pessoais e tal, mas como adotar uma rotina saudável em uma sociedade doente?

Empregos que dizem ser de oito horas diárias e se estendem por até doze, falta de segurança pública para fazer exercícios nas ruas e praças, fantasma da inflação rondando os preços da alimentação saudável. Como ignorar tudo isso, fingindo ser um dos casos de sucesso, uma das excessões que se destacam em publicações chamativas que só apontam nosso fracasso em ser saudável?

Nutricionista falando pra fazer marmita nos finais de semana, sem saber se você também trabalha nos fins de semana. Endocrinologista falando para fazer exercícios sem saber um ou outro desencadeia a enxaqueca. Sem saber que uma crise pode me deixar uma semana sem condições de me movimentar.

E sim, já tentei me forçar a seguir mesmo com dor e não recomendo. Se a dor for fraca é no máximo uma caminhada leve ou um alongamento. Mas tem muito profissional que não aceita isso, eu que sou preguiçosa.

Música para dor

Quando eu era bem mais nova tinha uma propaganda da Neosaldina em que comparavam a dor de cabeça com um grupo de pagode ruim tocando sem parar. Quando a dor ataca, e às vezes até um pouco antes, sons repetitivos ou volume alto, luz forte, cheiros, calor ou frio, têm o poder de causar um mal estar absurdo. Mesmo coisas que você habitualmente gosta, como um perfume ou uma música irritam, deixam mal.

Por outro lado, tem música que ajuda. O Dorflex chegou a lançar um site que disponibilizava músicas para ajudar a diminuir a dor causada por cefaleia tensional, mas já está fora do ar. No Spotify é possível achar algumas playlists e confesso que me ajudou. Algumas vezes ajudou a passar, em outras diminuiu a intensidade.

Conexões

Agora que vejo enxaqueca, ansiedade e obesidade interligados, fico pensando o quanto faz falta que os médicos vejam a gente como um organismo completo. Também acho que falta uma vontade de realmente escutar o paciente. Em clínicas com consultas agendadas a cada 20 minutos para aumentar a lucratividade, muitas vezes os médicos não olham de verdade para o paciente. Deve ser frustrante até para eles.

Enquanto isso, meu relacionamento segue firme. Hoje nossos encontros são mais esporádicos, normalmente durante a TPM. Mas quando a dor vem, é forte. Continuo trabalhando mesmo que a dor seja absurda, falando que se piorar, eu paro. A ansiedade, no entanto já melhorou muito, está sob controle. Talvez melhore de vez quando eu conseguir terminar esse relacionamento abusivo com a enxaqueca.

--

--

Gabi
Gabi

Written by Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

Responses (2)