O veneno que se ouve

Vou te contar uma coisa, tem brutalidade que vem de sutilezas.

Gabi
6 min readSep 8, 2021

Cada pessoa sabe o que dói no próprio peito. Para alguns são grandes acontecimentos, perdas significativas de pessoas próximas, violências profundas, fome, guerra, abusos. Para outros é mais difícil identificar de onde vem a dor. São pequenas frases, olhares e até silêncios.

Foto de NEOSiAM 2021 no Pexels

Talvez um ou outro possa ser fácil de manobrar, mas no conjunto da obra, vai se acumulando. Talvez possa ser fácil para alguns e complicado para outros. A mensagem nunca é de quem envia, mas de quem recebe, por isso uma mesma situação pode causar efeitos diferentes em pessoas diferentes.

O que te machuca?

Lembro de ter sido chamada de cavalona pela mãe de um colega quando tinha 5 anos de idade. Dos colegas na natação falarem que meu peito parecia geleia de mocotó quando eu tinha 13 anos, eu era uma das mais rápidas, mas logo depois desses comentários deixei os treinos. De que eu não penteava o cabelo, porque ele era armado.

De ter recebido cobranças por ter uma letra feia — e isso parecia mais importante que minhas notas altas. Lembro de um professor falar que mulheres iam mal em provas porque se distraiam com o cabelo — mas todas as melhores notas da sala eram de meninas. De ter que ficar feliz por ter dor de cabeça, afinal tinha tanta gente com problemas mais sérios.

Lembro de escutar que eu tinha que entender. Eu sempre tinha que entender e relevar. Quem me magoava, quando era injustiçada, quem tentava me sabotar etc. Meninas, e depois descobri que mulheres também, não podem reclamar. Têm que ser cordatas, submissas, obedientes. Ter personalidade, mas ser obediente. Agradável. E parece que eu sempre fui desagradável.

Sempre me machucou essa sensação de desajuste, de não pertencimento. É o meu olhar perdido, sem expressão no rosto em algumas fotos desde criança. Quase ninguém vê. É um sorriso meio triste, de quem tá ali cumprindo tabela, mas não é legal ou bonita ou divertida ou boa o suficiente. Uma quase pessoa.

Busca pela perfeição

A cobrança em “sedes perfeita como meu pai que está no céu é perfeito” é destruidora. Quem teve uma criação cristã (é minha única experiência, não posso falar de outras criações) e a tendência a ser obediente sabe o que é isso. Se eu fosse mais desobediente, talvez não tivesse sofrido um impacto tão grande. Mas infelizmente eu aprendo rápido.

A coisa da perfeição é bem louca, porque você tem que buscar desesperadamente ser perfeito, mas o tempo todo é lembrado que nunca vai conseguir. “A perfeição não é desse mundo”, dizem. A frustação é certa, não existe conquista ou felicidade possíveis.

Maluco, se adulta é difícil colocar isso tudo numa lógica, imagina pra uma criança? A minha experiência nessa lógica inclui:

  • Não poder ficar feliz com as boas notas, mesmo que tenha sido difícil.
  • Aguentar a dor de cabeça quietinha, porque eu tinha que me esforçar mais.
  • Não saber me defender, porque eu ficava tentando entender a motivação dos outros.
  • Duvidar muito de mim mesma, principalmente se alguém jogasse uma isca.

Claro que a lista não para por aqui, mas nem eu sei a extensão completa dela. Ainda vai muita terapia pra entender. Já na adolescência, comecei a questionar algumas coisas que a religião impunha, como a ideia de acreditar mesmo sem concordar. Não é pra mim.

Veja bem, eu não consigo fingir que tá tudo bem em dar ares de santidade a uma obra de ficção baseada em tradições orais e escrita a sei lá quantas mãos. Editada e re-editadas conforme os interesses de instituições. Pode ser um guia de moral e ética? Pode. Divino? Difícil acreditar.

Aí vem aquela coisa toda da incoerência das mensagens. Amar ao próximo como a si mesmo (mas se quiser ser machista, racista, classista ou o que seja é aceitável, contanto que favoreça a religião em questão). E falo a religião porque não cresci católica, como a maioria de meus amigos. Ou evangélica, como grande parte das pessoas hoje. Cresci Kardecista, o que nem deveria ser considerado tecnicamente religião pelos próprios preceitos da doutrina. Mas consideramos, então é isso.

Iluminismo

Antes de qualquer coisa, não me julgue. Cada um tem o direito de se apegar aos próprios amigos imaginários. No geral, o Kardecismo funciona bem pra mim porque tem a coisa de só acreditar no que faz sentido, no que pode ser comprovado — pelo menos é o que tá lá.

Foto de MART PRODUCTION no Pexels

Tem quem acredite em anjos, quem acredite em entidades e quem acredite em espíritos. Quem acha que um dia vai ter que pagar pro barqueiro levar pra vida eterna e quem acha que uma vida é pouco pra deixar de ser idiota, então temos sucessivas chances de melhorar. Tem gente que acredita que será recompensado com virgens e quem acha que irá descansar. São muitas coisas para acreditar e certeza de qual é a certa…bem, aí que está, só na eternidade.

Meu problema na religião foi quando as respostas começaram a ser que eu não tinha condições de entender a verdade. Veja bem, se eu preciso entender para acreditar, como chega um ponto em que eu tenho que acreditar por não ter condições de entender, sem que nem ao menos tentem explicar?

Mas esse foi só o primeiro problema. Depois vieram questões envolvendo vegetarianismo. Um livro que foi bem famoso no meio, não sei se ainda é, falava que deveríamos parar de comer carne, pois estaríamos comendo cadáveres. Sim, tecnicamente é verdade. Mas, todo o ciclo natural rola em todo de trocas de matéria. Se a gente já fosse feito de uma matéria sublime, ok, mas não. Somos feitos da mesma matéria bruta.

Tem gente que não digere bem, não gosta, tem dó dos bichinhos e tudo bem— não acho que ninguém tenha a obrigação de comer carne. Mas dizer que uma pessoa é mais ou menos evoluída espiritualmente porque come batata frita e recusa o churrasco, não faz sentido. Uma vez li uma entrevista da Monja Coen em que ela explicava que boa parte da população mundial não tem sequer a oportunidade de escolher o que vai comer. Então não faz sentido essa discussão.

Com o tempo, surgiram os questionamentos a respeito de ter filhos. Não que seja uma exclusividade do Kardecismo colocar a responsabilidade sobre as mulheres, mas tem toda uma questão de que a criança fez um pacto com você antes de vocês encarnarem e que ao escolher não ter filhos você pode estar atrasando o desenvolvimento espiritual dela. Mas caramba, você nem sabe. Tanta gente nem tem filhos.

O pior é que os homens não sofrem a mesma pressão. Afinal eles engravidam as mulheres, não são engravidados. Até esperam que eles se cuidem, mas a responsabilidade mesmo é com a gente, então no fim do dia, quem tem que decidir é a mulher, com todo o peso que isso representa. E falo peso, porque não é só a questão de resolver ter uma família com filhos. É toda a nossa fragilidade, os abusos que sofremos, os erros médicos e abandonos que ficam por nossa conta. Um homem que fala que não quer filhos é aceitável, uma mulher é uma aberração.

A coisa mais difícil pra mim foi descobrir que Kardec era racista. Sim, eu sei que era comum na época, mas veja bem, ainda é comum e eu não acho nada aceitável. Com tanto espírito da verdade falando o que precisava ser falado pra ele, não tinha um pra situar que essa ideia estava errada? Claro que no Brasil a chegada da doutrina ganhou outros contornos, mas esse começo acaba fazendo a gente questionar muita coisa.

Autoestima

Sei que a coisa da religião ficou um pouco grande, mas é que ela explica muito de quem eu me tornei. Acho que teria sido bom estudar filosofia na escola, mas veja, nem as aulas regulares eu tive direito.

O Brasil é um país muito espiritualizado, e claro que isso tem um lado bom. No entanto, para nós, mulheres, essa religiosidade toda vem acompanhada de altas doses de machismo. Isso nos corrói, nos enfraquece e até é um problema para a própria fé. Afinal, quanto mais fortes formos, mais fortes serão nossas instituições. Acredito que a fé, a religiosidade, a crença, são instituições vivas, que evoluem com a sociedade, com a gente.

Se os ditos livros sagrados foram reeditados tantas vezes com o passar dos séculos (Concílio de Trento, você deve ter estudado isso), traduzidos, reinterpretados, é porque nada do que é secular na religião é definitivo. Isso provavelmente foi se adaptando à sociedade e talvez já tenha passado da hora de se adaptar novamente.

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Gabi
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Written by Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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