O sabor derreteu
Sim, a nostalgia vende, mas não traz seu amor de volta em três dias. E olha que o preço é caro. Mais ainda se a gente considerar a falta de qualidade na entrega. Se as frases genéricas estão confusas para você, é porque elas refletem a solidão que ficou em minha memória. Solidão, sim, pois a memória não vai encontrar eco no que sobrou. Mas vamos organizar as coisas e tentar explicar o que está me deixando tão sem coerência.
Eu cresci em uma cidade que já foi considerada a capital nacional do sorvete e, durante a minha infância, eram pelo menos cinco opções de sorveteria artesanal pra escolher. Isso moldou uma parte do meu perfil psicológico. Sorvete é um porto seguro, um momento de felicidade genuína — se for bom, claro.
Era a recompensa pós dores de ouvido, o que eu nunca entendi muito bem. ou quando trocava o dente, o que eu conseguia entender. Era parte do ritual de fim de semana em uma infância feliz. Praia, churrasco, sorvete no fim de tarde na praça.
Lembro de três sorveterias tradicionais na praça principal e outras duas que ficavam em ruas próximas. A cidade ainda era pequena, mas confesso que eu vivia mais no centro e não sei se tinham outras em algum bairro mais afastado.
Rocha, Aldo, Sem Nome e Sérgio são os nomes que lembro. Minha mãe diz que Sem Nome é por causa de uma novela que passava na época, mas os outros nomes acredito que sejam ligados aos proprietários.
Nos anos 1990 houve o fenômeno das sorveterias self-service, e a possibilidade de poder colocar qualquer tranqueira no sorvete ganhou a atenção dos consumidores. Eu não gostava muito, achava que as coisas ficavam tão misturadas que perdiam o gosto, mas fez muito sucesso. As sorveterias tradicionais da cidade foram quebrando, ou se adaptando ao modelo e quebrando depois, enfrentando a concorrência de sorveterias com produção mais barata e com menos qualidade, a concorrência de sorvetes industrializados e chegou a moda do coma à vontade.
Sim. Por um preço fixo podia se escolher quantos sabores quisesse. Tinha uma que oferecia sabores inusitados, como salsinha e calabresa, além de pastel e suco de fruta por esse preço fixo. Na minha cabeça só podia ser um caso de lavagem de dinheiro, pois era barato demais pra ser sustentável.
Mudamos de século e as sorveterias foram fechando. Vieram as modas do sorvete de iogurte, do açaí e da paleta mexicana. A cidade não era mais a capital nacional do sorvete. Mas uma das representantes ainda estava lá, firme, com suas taças tradicionais, sem contar o sorvete de amarena e o de coco com doce de abóbora.
Era um refúgio em dias de cidade lotada, calor escaldante e início de namoro. Era um lugar em que a gente eventualmente encontrava colegas de escola quando estava na cidade. Era uma lembrança boa. Era.
Em 2022 completam 20 anos que saí da cidade pra estudar, casei e me mudei várias vezes. Visitando meus pais, lembrei da sorveteria e a vontade de um sorvete veio mesmo com o frio. Vamos? Vamos.
Começa com o preço. Se você acha caro o preço do sorvete em São Paulo, vai se surpreender ao perceber que pode ser bem mais caro no litoral. Mas a nostalgia faz a gente seguir em frente com decisões idiotas e paguei mesmo assim. Que decepção. Duas bolas de sorvete por R$24 e qualidade que não vale R$5. Um pouco da infância se tornou uma massa enjoativa e sem gosto, que explica muito bem o motivo da cidade não ser mais a capital nacional do sorvete.
Eu sei que a gente tende a ver o passado melhor do que realmente foi, mas o sorvete que eu encontrei era pior que uma decepção. Era um produto superfaturado de baixa qualidade, que me despertaria alguma tristeza ainda que não tivesse uma nostalgia envolvida.
Se a sorveteria vai sobreviver com um sorvete tão vagabundo, eu não consigo prever. O comércio em cidades turísticas tem uma lógica meio atravessada, é difícil de entender. Mas pra mim, é como se já não existisse mais.
Obs.: Não estou citando o nome da sorveteria, porque vai que ficam bravos…