O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui.

Gabi
5 min readFeb 17, 2021

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William Shakespeare

Esses dias ouvi que alguém não gostava de citações. Que estranho, né? A verdade é que pensei melhor e meu problema não é exatamente com as citações, é com as pessoas acharem que são melhores que as outras por decorarem frases de terceiros. Por exemplo, pessoas que usam uma frase do Will e em seguida complementam com: “o bardo fazia alusão a …”. Carai, em que época e local você vive?

Foto de Andreas no Pexels

Outro problema é tomar citação como uma verdade absoluta, imutável. Uma frase só ganha sentido dentro de um contexto. Tire o contexto e tudo pode mudar — como nas edições de jornais e nos vídeos do Youtube. Se uma frase tivesse sido dita por outra pessoa, ela perderia seu valor? Talvez sim, afinal algumas frases só entram para história pelo conjunto da obra do autor.

O diabo mora nos detalhes.

Provérbio alemão

A imagem de um demônio, assim como do inferno, foi criada para ajudar judeus, cristãos e muçulmanos a manterem uma boa parte das pessoas em seu devido lugar. Ou seja, contribuir para a coesão social. Veja bem, às vezes ele é tido como o oposto de tudo o que é bom e em outras como um agente público celestial que vai testar sua fé.

Pode ser um adversário, como o Satã babilônico, ou um anjo caído, como o Lúcifer cristão. Não fiz catecismo e posso ter perdido alguma parte da conversa, mas acho estranha essa parte da coisa. O raciocínio não é que Deus é perfeito e criou tudo? E Deus é amor? Então o Senhor também teria criado Lúcifer, que teria se rebelado e seria o seu oposto.

Ou alguém não é tão perfeito e amoroso assim, ou está faltando parte importante dessa história.

Deixando as histórias bíblicas de lado, afinal são alegorias que não deveriam ser levadas ao pé da letra. Sim, um livro só de alegorias. E também é preciso pensar que são dois mil anos de revisões e alterações. Como assim? Teoricamente, trata-se da Palavra. O Velho Testamento é aquela coisa bélica e pornô, que não deveria ser apresentada à menores de 14 anos, mas é uma história consolidada e compartilhada com os judeus.

O Novo Testamento é uma obra original, que merece contextualização: Jesus falava em aramaico. Trinta anos depois que ele morre, os apóstolos escrevem o que se lembram em grego, cada um de seu ponto de vista. Os romanos perseguiam a galera e depois de muito tempo resolvem aderir ao culto, mas fazem passar tudo para o latim.

Com a estrutura de Roma, a Igreja aprende o poder da burocracia. Aí o que está escrito passa a ser revisado — e alterado — periodicamente. Inclusive o coisa ruim. Sim, ele vai evoluindo e se adaptando para ajudar a controlar a galera e aumentar o poder da Igreja. Parece que toda a coisa boa que os reinos do céu promete não é o suficiente para fazer pessoas a andarem na linha e doarem dinheiros, então vamos botar medo.

Foto de Any Lane no Pexels

Toda minoria é errada ou pecadora. Mulheres? Pecadoras, fracas, falam com serpentes, bruxas, vamos queimá-las, estão dominadas pelo capeta. Não é branco? Sangue sujo, selvagem, seguem demônios em suas religiões, fazem sacrifícios humanos, precisam ser salvos e começar a dar dinheiro para gente. Aquele banho de sangue em nome de Jesus. É branco mas não é cristão? Salem, IRA, justificativas sem fim para roubar, isolar e matar.

Mas a culpa é sempre de quem é torturado, morto e roubado, tá?

Porque o outro mostra o quanto, no alto das certezas absolutas, a classe dominante sabe pouco. O quanto tem pouco. Mesmo que hoje sua religião seja um racionalismo insípido, a classe dominando se justifica com uma moral meio torta.

— Eu mereci!

O inferno são os outros

Jean-Paul Sartre

Eu acredito que o pior e o melhor da vida vem na interação entre as pessoas. Relacionamentos. Tem a coisa boa entre amigos e família, ficar feliz pelo outro e com o outro. Encontrar um grande amor, ter uma família (seja ela como for, não seja um/uma babaca) e até aquelas pequenas surpresas do dia a dia, como um recepcionista consultório médico que sabe como resolver seu problema com o plano de saúde, sem entrar naquela espiral de que só está seguindo o protocolo e não pode fazer nada, ou a atendente do café que percebe que você está num dia ruim e faz alguma gentileza porque ela é uma pessoa genuinamente legal.

Mas na hora de viver a coisa ruim, ah, vem o inferno. Inclua aqui o presidente inapto, o gado, terraplanistas, negacionistas, antivacinas. Gente que te mede de cima a baixo quando você entra na loja e fala que não tem nada que te sirva, sendo que você entrou na loja pra comprar um presente pra outra pessoa e gente que usa você como enciclopédia (quer perguntar como faço meu trabalho, pague minha hora de consultoria). A lista segue indefinidamente.

Claro que essas opções óbvias chateiam, mas as que machucam mesmo são as menos óbvias. Talvez por que nos lembrem que todos nós falhamos? Ou por nos surpreender e vir de um lugar em que acreditávamos estar seguros? Cada um tem a sua resposta. Os diferentes círculos de inferno da vida vão se sobrepondo e chega um momento em que tudo o que você quer é um impeachment. Mas a gente sabe que isso não vai resolver tudo, se quem o elegeu, incluindo nossos amigos e familiares, muitos deles cristãos e tal, ainda pensam da mesma forma. Ainda mais se não sabemos como transpor as barreiras para avançar o diálogo.

Todo dia uma irritação diferente, um inferno particular. Com essa coisa de isolamento social, o psicológico bagunçou bastante e as interações humanas parece que ficaram mais difíceis. E no meio disso tudo, precisamos lembrar que se uma é certe, é que muitas vezes o outro somos nós: inferno, demônio e terrivelmente humanos.

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Gabi

E lá vamos nós! Terra do Nunca? Bad Place? Certamente atravessamos o espelho.