O futuro é um só, enquanto o passado muda o tempo todo
Se as minhas lembranças não são só minhas, o quanto posso confiar nelas?
Não sei se vi essa frase em um filme ou em uma série dessas de true crime, mas esse conceito de que o passado está sempre mudando é fascinante. Veja, entendo que só deve ter acontecido uma coisa objetivamente, mas como não existe uma forma imparcial de acessar o passado, ele muda conforme o ponto de vista.
Por exemplo, quando era criança eu queria fazer aulas de ginástica olímpica (era o nome, na época). Minha memória é de que não tinha essa modalidade na pequena cidade litorânea em que eu morava. Então, aceitei fazer natação com meus amigos.
No entanto, minha mãe diz que eu não quis fazer ginástica. Em quem acreditar?
Veja, quando fui fazer a inscrição no centro esportivo, quem levou foi a Tia Nice. Seus dois filhos iam fazer natação. Será que eu confundi o que ela falou? Será que ela mentiu pra mim e depois pra minha mãe? Será que minha mãe se confundiu? Nunca vou saber. Tia Nice morreu há décadas.
Tenho a memória de estar na fila pra inscrição e ficar chateada porque não poderia fazer a modalidade que queria. E de me conformar, afinal se não tinha a aula, não poderia fazer nada. Aliás, eu nunca fui de ficar me lamentando.
Sempre pensei que gostaria de ter feito ginástica olímpica e quando minha mãe falou que fui eu quem não quis fazer, o passado mudou.
Percepção do tempo
A gente aqui nessa parte do mundo ocidentalizada tende a pensar o conceito de tempo de uma forma linear. O passado está pra trás, o futuro está à frente e todos fazemos um caminho contínuo entre o nascimento e a morte.
É Newton com os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural e o tempo que começa no Big Bang e vai até o fim da eternidade. Mas aí, vem Einstein com a relatividade e a ideia de que espaço e tempo se confundem. Apesar da figura do cientista ser altamente difundida, o conceito parece que só está presente na cultura quando falamos de ficção científica.
A teoria quântica faz a percepção do tempo mudatr mais um pouco, mas parece que geral se liga só nas besteiras que o coaches falam. Mas não é pra ser assim. Existe um físico teórico italiano de nome Carlo Rovelli que afirma:
a ideia comum que temos sobre o que é o tempo e como ele funciona não serve para entendermos átomos e galáxias.
Segundo ele, nossa percepção do tempo está atrelada a materialidade em nosso planeta, mas em outras realidades essa percepção seria diferente. É a ideia de elasticidade do tempo e a quebra do padrão unidirecional de Newton que temos, mas ainda não absorvemos como cultura. Nesse caso, nosso tempo contiua a ser o de Newton.
Veja bem, tudo isso faz parte da realidade em que vivemos. A tecnologia evoluiu horrores graças a essas leis e a como nossa sociedade vem estudando o tempo, mas fato que nem todas as culturas pensam o tempo assim e pensamentos diversos podem levar a soluções que não conseguimos imaginar.
Palavras importam
Existem pesquisas que estudam como a forma como lemos e escrevemos interfere no jeito em que construimos nossos pensamentos. A cientista cognitiva Lera Boroditsky demonstrou que os falantes do idioma inglês tipicamente observam o tempo como uma linha horizontal, da esquerda para direita. Essa forma de ver o tempo é similar a de boa parte das pessoas ocidentalizadas, mas pode mudar para os falantes de hebraico, por exemplo, que organizam textos e linha temporal da direita para esquerda.
Já os falantes de mandarim podem idealizar o tempo como uma linha vertical, em que a parte de cima representa o passado e a de baixo, o futuro. E tem mais: nem sempre o futuro é à frente. Para o povo aimará, que vive na região dos Andes, a palavra para futuro significa “tempo atrás”. O raciocínio é que, como não podemos ver o futuro, ele deve estar atrás de nós. Um jeito totalmente diferente de pensar e expressar as noções de passado, presente e futuro.
O psicólogo cognitivo Daniel Casasanto questiona se a nossa física, no que é relacionado a tempo, foi moldada pelo fato de que os falantes de inglês, alemão e francês terem sido fundamentais para sua criação.
Segundo Rovelli, nós compreendemos por que o passado parece fixo para nós, enquanto o futuro segue em aberto. Imagino que se isso muda, toda a compreensão do tempo também muda. Então a minha aposta é que sim, se a física se desenvolvesse em outras culturas, os resultadfos poderiam ser diferentes.
Memórias
Tudo muito lindo, mas um pouco mais complicado se a gente voltar ao fato de que nada é exatamente objetivo quando o passado puder mudar o tempo todo. Temos memórias, diferentes pontos de vista, influência da cultura e do idioma, e nenhum ponto de segurança como verdade absoluta.
Às vezes, podemos deixar o passado mais bonito do que foi, achar que vimos o que não aconteceu e até criar memórias sobre eventos em que não participamos. São as chamadas memórias falsas.
Segundo o Instituto de Psiquiatria do Paraná,
Memórias falsas são recordações distorcidas ou “fabricadas” de um evento. Algumas dessas memórias podem ser puramente imaginativas (como achar que pegou as chaves do carro quando, na realidade, nem encostou nelas), enquanto outras podem ter um fundo de verdade, mas as informações estão distorcidas — neste caso, pegar as chaves e, ao invés de coloca-las no bolso, colocar do outro lado da bancada por desatenção, mas na hora de recordar, lembra de tê-las colocado no bolso.
O fenômeno das constelações familiares é um dos que mais se apoiam em memórias, que podem ou não ser baseadas em fatos reais, e podem ou não trazer muitos prejuízos aos envolvidos. Quando nem os dados materiais são exatamente absolutos, as memórias são ainda menos. Mais uma vez, o passado vai se alterando com o passar dos dias.
Nostalgia
Não sei se a neurodivergência tem influência nisso, provavelmente sim, mas não sou uma pessoa especialmente nostálgica. Tenho amigos que gostam de ficar recordando o tempo de escola, repetindo que naquela época que éramos felizes e não consigo compactuar*.
Não que eu não tenha sido feliz, mas me lembro bem das dificuldades da adolescência. Do sentimento de solidão mesmo tendo um grupo grande de amigos, das boas notas e família estruturada. Lembro de ter muitos questionamentos existenciais, de ver meus pais estressados, de ter muito medo ou insegurança.
Na faculdade foi difícil aceitar que não seria cientista e depois recomeçar em outra área. Passar muita dificuldade financeira, me sentir feia, deslocada em outro estado, falada por ser pobre. Lembro de não ter dinheiro para roupas, sapatos ou comida na faculdade. Lembro de ser tratada como uma piada por colegas e professores. Foi ótimo, mas ainda bem que acabou.
Não, a nostalgia não é pra mim. Tenho boas memórias, mas não me esqueço do que doeu. Vai saber se alguma dessas lembranças é falsa. Sempre aparece alguém para falar de coisas que não foram bem assim e vamos ser sinceros, talvez pra essa pessoa não tenha sido. Aí as alternativas são viver com uma cara de tacho ou começar uma briga pela verdade. Não quero. O futuro, que é um só, me aguarda.
*Sim, rever alguns pontos pode ser terapêutico, inclusive adoro. Mas é um processo que prefiro que seja feito com a ajuda de alguém em que eu confie, e não no modo aleatório.
**A coisa da constelação familiar me foi apresentada como um método que vai trazer à tona memórias, mas isso não necessariamente vai corresponder ao propósito da terapia.