O diabo está nos detalhes
Sim, chegou o momento de repetir o tema anual astrológico que eu quase tive que abandonar. Há dez anos eu faço questão de registrar meu mês pré-aniversário de alguma forma pra provar que Patrícia estava errada e que não vou sentir os efeitos de nenhum inferno astral.
Antes de entrar no assunto principal, preciso falar de Patrícia. Agora não é mais Paty, porque não somos mais íntimas. Não reconheço a pessoa que ela é hoje e conversando com diferentes amigos em comum, a sensação parece ser a mesma. Ninguém que conhecia a adolescente que me chamava para andar de bicicleta até a próxima cidade ou assistir documentário sobre reforma agrária, entende como ela se tornou uma antivacina.
Sabe, ela assistiu as mesmas aulas que eu, estudou revolta da vacina e achou engraçado as pessoas lutarem para não serem vacinadas. Passamos tardes conversando sobre como a Humanidade foi pra Idade Média depois do Império Romano. Hoje ela se tornou o mesmo tipo de gente fanática que criticava.
Bem, Patrícia foi invocada aqui porque todo ano insistia que meu sofrimento ia começar um mês antes do meu aniversário. Em especial, quando eu estava pra fazer 30 anos, disse que eu viveria os piores 30 dias da minha vida. Na ocasião, escrevi um texto por dia no meu blog pra provar que estava tudo bem — e estava. Mas chegamos em 2021.
Quase dei razão a uma sem noção
Os dias começaram a ficar difíceis. O trabalho rendeu uma dose cavalar de estresse, o que levou a uma enxaqueca monstruosa — do tipo que faz chorar. Já teve dessas? Mesmo tendo uma relação longa com as enxaquecas, raramente eu tenho uma dor em nível insuportável e paralisante. Mas foi o caso.
Minhas costuras deram errado, teve planta que secou, a ansiedade esteve a mil. Tenso mesmo. Foi aquele momento de repensar se eu passaria a acreditar em Inferno Astral. Acontece que eu sou otimista por natureza.
A dor passou, cortei outras coisas pra costurar — e é por isso que só costuro pra mim. Minhas plantas estão se recuperando e estou me entendendo com o trabalho. Lembrei que acabei de mudar de núcleo e isso sempre é complicado. Falei vários nãos para sobrar um pouco mais de espaço pra mim e muitos desses nãos foram pra mim mesma.
Eu me exijo em um nível bem alto, fui ensinada a isso. Tenho que ser sempre nota máxima, mas isso não existe. Nunca será o suficiente, então vamos ficar com apenas o meu melhor.
O inferno dos adjetivos
Não sei quais já atribuíram a você, nem em qual etapa da vida. Dizem que marcam muito na infância, mas qualquer época é boa pra uma conversa à toa marcar forte e traumatizar. Quando se está em uma briga e alguém te xinga, dói, mas talvez por ser clara a intenção de magoar, é mais difícil levar a sério o que foi falado. Quando se está conversando e as pessoas dão uns toques, tipo assim, só na amizade… Capeta, é você?
EGOÍSTA - PREGUIÇOSA - TEIMOSA - BARRAQUEIRA - PETULANTE
Esses são os que mais escutei. Gorda não conta, porque não é xingamento, é um estado físico do meu corpo e sim, eu comi demais. Não vem ao caso.
Todos esses defeitos, que sim, tenho em algum grau, mas não sou uma pessoa definitivamente preguiçosa. Por 10 anos eu acordei antes das sete da manhã, peguei quase três horas de transporte pra ir trabalhar e depois de nove ou dez horas, mais três horas de transporte até chegar em casa. Uma pessoa preguiçosa não faria isso. Daria uma desculpa, arrumaria um emprego que desse menos trabalho e ficaria reclamando da vida.
Ah sim, esse tipo de exemplo é parte da minha teimosia, certo? Ou é porque eu penso com a minha própria cabeça e tenho minhas próprias ideias? É difícil entender isso tudo. As pessoas despejam adjetivos na gente e a gente compra, porque elas falaram que é pra nosso bem. E talvez na cabeça delas seja mesmo. Só que a gente não precisa concordar.
No geral eu sou uma pessoa que fala baixo e usa pouco palavrão. Então porque mais de um veio dizer que eu tinha que ser mais discreta? A quem incomoda eu ser autêntica e ter minha própria opinião? Estou sendo petulante? É melhor para quem que minha autoconfiança continue no chão?
O que eu percebi é que frases aleatórias são complicadas. Precisamos de exemplos reais. “Achei um pouco egoísta quando você comeu todo o chocolate e não pensou se eu queria” é diferente de “Você é uma pessoa egoísta”. E na minha cabeça, quem fala uma coisa ou outra, muitas vezes tem intenções diferentes — mas pode ser que não tenha.
Quanto ao inferno
O céu está azul, eu não tenho notícias da Patrícia faz tempo(também desisti de procurar). A ansiedade está sob controle e coisas boas estão acontecendo, então não. Continuo não acreditando em inferno astral — até que se prove o contrário.
Gosto de horóscopo e de mitologias. Discuto mentalmente com Susan Miller todo mês, mas não moldo minha vida por conta disso. Não consigo acreditar em coisas me desejando mal, fases de azar. Sorry. Já me falaram tantas vezes pra colocar esparadrapo no umbigo e até hoje eu tento entender o sentido disso. Se uma calça jeans não bloqueia a energia ruim, porque um pedaço de fita colante em x iria bloquear? E se é pela intenção, por que eu preciso colocar algo físico?
Desculpa se estou falando contra algo que você acredita, mas é que já insistiram muito comigo neste tipo de coisa sem nunca me darem uma razão minimamente razoável. Também tenho dúvidas sobre a culpa incutida às mulheres nas religiões, o que me levou a me afastar de quase tudo. E nem é o pecado original, esse é ridículo demais pra eu levar em consideração.
O que me incomoda é a série de deveres, preocupações que só mulheres precisam ter, mas como se fosse uma ordem divina. Não dá pra mim. Estou começando a acreditar que se alguém inventou a religião (sei que foi o homem, é uma necessidade humana), mas, se alguma entidade sobrenatural inventou a religião, foi o diabo. Tirando o Padre Júlio, tá difícil.