Muitas bocas e poucos ouvidos

Gabi
4 min readFeb 26, 2020

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Existe um ditado antigo, meio infantil, que fala sobre o fato de termos apenas uma boca e dois ouvidos, que seria para ouvir mais do que falar. Mas em tempo de comunicação predominantemente via redes sociais, virou um tanto faz.

Todos estão cheios de razão, mesmo que não tenha fundamentos. Não existe debate, cada um se alimenta de leituras que apenas comprovem o próprio ponto de vista — seja de direita ou de esquerda, vegetariano ou carnívoro, biscoito ou bolacha.

Uma coisa meio Babel

Tem uma passagem bíblica sobre a Torre de Babel, que vem a ser um mito para a diversidade de línguas faladas no mundo. Eu não fiz catecismo, mas acho a história interessante. Os descendentes de Noé resolveram fazer uma torre tão alta que alcançasse o céu para eternizar seus nomes. Estamos falando de Antigo Testamento e esse Deus não gosta de competição, ficou irado. Para dar uma lição, fez com que cada um passasse a falar uma língua (idioma) diferente e os espalhou pelo mundo.

Imagem: Google

Com isso, em cada lugar do mundo as pessoas começaram a falar uma língua diferente e pararam de se entender. Isso teria dado origem aos diferentes povos, que se desenvolveram sem se entenderem ao longo dos milênios apesar de serem todos descendentes de Noé.

Apenas para fora

Todos expondo ao mesmo tempo, apenas a própria voz é entendida. Se no mito bíblico isso foi motivo de caos, se foi um castigo, hoje é um comportamento em que cada um defende que é o próprio direito e não percebe a grande confusão de direitos que se torna. Aos poucos fomos levando as bravatas do mundo online para o offline.

Redes sociais. Possibilidade de anonimato e de celebridade. Falamos muito e entendemos pouco. Queremos entender pouco. É uma coisa de precisar mostrar que tem razão, mostrar que existe, que sabe, que é melhor, que é mais. E pra quê? Quem sabe, para marcar território.

Todos falam. As vozes se confundem, se sobrepõem, se elevam e ninguém entende nada. Não se entende. Por vezes são oferecidas soluções, opções, respostas, mas ninguém ao menos ouve. Muitas vezes os oponentes estão falando exatamente a mesma coisa. Ninguém para ouvir, muita gente apenas para falar.

Positividade tóxica

Namastê. Gratidão. Hoponopono.

Se você não está bem, você está errado. Você está contaminando o ambiente. Toda tristeza está invalidada e você tem que sentir culpa por estar triste. Por estar com raiva. Com fome. Desconfortável.

É estranho e é defesa. A questão da obrigação de estar bem e parecer radiante e feliz é que todos querem colo e ninguém quer dar colo. Então ao invalidar a dor alheia, quem sofre perde o direito de sofrer.

Imagem: Google

O problema estará lá fora, eles que lutem. A dor do outro sempre é chata, exagerada e descartável. Todos falam sobre se afastar de pessoas tóxicas e valorizar só as coisas positivas, como se a vida fosse só positividade o tempo todo. Deve ser por isso que tem tanta gente com crise de ansiedade hoje, porque não se é permitido sofrer.

Tudo bem

Nem sempre a vida vai estar tudo bem e é assim mesmo. Corona vírus, frio no Carnaval, presidente armando golpe de estado via WhatsApp, machismo escancarado, machismo disfarçado como preocupação, racismo nosso de cada dia, um monte de coisa que machuca e ofende.

Soma-se a isso as coisas pessoais. O que acontece particularmente com cada um. As brigas em família, os problemas no trabalho, os términos, amigos que morrem, doenças, assaltos. A vida vem com alguns desafios complicados às vezes e nem todo dia dá pra responder com “tudo bem”.

Ter a obrigação de estar feliz não ajuda. Não poder sentir a morte, a dor ou o fim de um relacionamento é cruel. Para voltar a ser feliz a gente precisa passar pelo luto do que for, acolher e superar — e cada um tem seu tempo.

Nas redes, nas rodas e até nas relações íntimas, não se pode mais ter o direito de estar triste. Todos têm uma solução para isso. Um remédio, um chá, um mantra. Mesmo que você só queira desabafar. O problema é que para o desabafo, alguém precisaria escutar e para isso, falta disposição.

Solução?

Eu só penso que a gente poderia escutar um pouco mais. Dar um segundo antes de sair vomitando opinião. Pensar no que estão falando e não apenas passar por cima. Assim, de leve. Mas olha, nada está escrito em pedra, não precisa se ofender. Aqui a gente aceita um diálogo...

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Gabi
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Written by Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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