Fluência
Eu não consigo mais dançar. Não digo as coreografias elaboradas de jazz ou flamenco, é o dançar em festas, me soltar ao som da música. Sinto que meus movimentos estão duros, não acompanham a vontade, o impulso.
Lembro que já me disseram que eu nunca dançaria muito bem. Que não era magra, que era muito alta e velha para começar. Que eu nunca sambaria bem porque sou branquela e não tinha cintura fina.
O pior aconteceu, eu acreditei.
Não sem lutar. Por muito tempo eu tentei, fui testando diferentes estilos, gostei mais de uns que de outros. Em todos mantive o medo de me mostrar dançando. Até que me convenci que haviam coisas mais importantes a fazer.
Na minha infância tinha uma personagem da Cláudia Raia na novela que era a bailarina da coxa grossa. A história dela dá certo de alguma forma, mas ela era só ligeiramente fora do padrão, não que eu seja muito fora do padrão, não que eu fosse na época. Gostar de dançar, passar dias e dias fazendo coreografias em casa, ser elogiada pela professora, não era o suficiente. Eu não seria boa o suficiente. Eu não tinha o físico, o perfil, ou o que quer que seja.
Comecei a acreditar que era indisciplinada e larguei mão.
Outro dia eu tentei desenhar e acredite, meus traços também estão duros, não acompanham as ideias. Coloco o lápis no papel, risco e o traço não tem vida. As curvas se transformaram em ângulos, a precisão sumiu. No desenho também escutei que não tinha talento, nem técnica. E mesmo tentando estudar, não houve um incentivo real.
Esquecendo palavras
A cada coisa que eu não consigo mais fazer, sinto que estou esquecendo palavras. É um verdadeiro perder fluência em um idioma que eu queria tanto aprender e dominar, como se estivesse presa no be-a-bá. Cada movimento que não se completa, cada traço torto, são como se eu estivesse gaguejando ao tentar formar uma frase. Como se meu discurso não tivesse eloquência o suficiente para expor um raciocínio. É um problema de expressão.
Inclusive, muito do desestímulo que recebo também afeta a expressão em outros idiomas. Pessoas que riem ao ver uma palavra pronunciada diferente do que consideram certo, ou do sotaque presente. Fazendo aulas de conversação recentemente, eu, que achava não ter vocabulário, estou descobrindo que na verdade tenho é medo de errar.
E talvez o medo de errar, tão estimulado em tantas áreas, aprisionem as pernas, os dedos e a voz. No geral eu falo baixo, mas eu realmente sou assim ou é medo de falarem que estou fazendo cena? Eu sou realmente tão desafinada quanto acredito ou tenho medo que falem isso de mim? Pois é, eu tenho engolido muita coisa como verdade e deixado cristalizar.
Interpretação
Talvez eu tenha problemas para me relacionar com o mundo. Talvez eu não entenda o que as pessoas falam. Talvez eu seja muito sensível. É “talvez” demais.
Mas acredito que todo mundo já passou pela experiência de escutar tanto que não iria conseguir fazer algo, que chegou a acreditar. Sou redatora há anos e uma amiga uma vez disse: quem sabe um dia a gente realize o sonho de viver de escrever. Mas eu vivo de escrever faz tempo!
Isso doeu muito porque fez parecer que me sustentar como redatora não é o suficiente para ser considerada uma pessoa que vive do trabalho com a escrita. Eu preciso do quê? Prêmios para peças fantasma? Fama internacional?
Eu já vivo bem fazendo o que gosto, será que eu deveria estar em um patamar ou qualquer coisa que não entendo?
Estudando um caminho de volta
Depois de perceber isso tudo, de aprender com quem fui e quem sou, achei importante fazer o que gosto. Sim, quero dançar e sentir que o corpo obedece ao que minha cabeça expressa. Desenhar o que vem à mente sem medo de não conseguir. Conversar em inglês, francês ou italiano da forma que eu sei que posso. E continuar escrevendo, porque isso, pelo menos, eu nunca deixei de fazer.