Flores de plástico não morrem

Gabi
6 min readJul 11, 2021

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Ou, com quem queremos falar?

Na faculdade pública onde estudei comunicação a gente aprendia pouco da técnica, dos recursos audiovisuais mais modernos. Nosso laboratório de informática era risível e nossos professores de criação, bem, alguns tinham parado nos anos 1980. Vários deles não tinham formação na área, muito menos vivência no mercado.

Em compensação, a gente aprendia a pensar e apesar de muitos alunos não terem gostado dessas aulas, porque pensar dói, foi a coisa mais importante para a minha formação. Na faculdade entendi que imparcialidade é uma ilusão. Isso pode ser entendido como uma derivação da interpretação sobre o que é a verdade, sobre não existir uma única verdade. Um pouco de filosofia, um pouco de Teoria da Comunicação, um pouco de conversa no boteco. Saudades, Sujinho.

Foto de Brett Sayles no Pexels

Quem lê o que escrevo há algum tempo sabe que não sou muito dada a academicismos e vou explicar o motivo: ele afasta a maioria das pessoas da discussão, torna tudo mais difícil. Sabe, a língua portuguesa de outros séculos é difícil pra gente porque a linguagem era diferente, afinal a forma como falamos e escrevemos muda o tempo todo. Hoje as gerações estão discutindo se fds significa “fim de semana” ou “foda-se” e esse é um exemplo de uma única mudança, de uma abreviação popular, que aconteceu de uma geração pra outra. Imagina o que não aconteceu no decorrer de séculos?

A distância entre a forma de falar da maior parte das pessoas e dos que eram considerados cultos ou estudados, também já foi bem maior. Muito maior que a atual, pois as desigualdades sociais já foram piores, por mais difícil que seja acreditar. Se criticamos essa distância entre o topo e a base, criada pela desigualdade social, pela falta de humanidade, provavelmente somos a favor de uma linguagem acessível.

Quando se fala em adotar linguagem mais acessível, muita gente lembra de linguagem de sinais, ou em legendas nos vídeos. Existem também os movimentos para a adoção de pronomes inclusivos, que não privilegiam tanto os homens, colocando-os como o padrão de ser humano. Mas eu falo também na questão de se adotar uma comunicação mais clara, fácil de ser entendida por qualquer pessoa e não apenas por iniciados em um vocabulário restrito.

Ao escrever em uma linguagem que nem as pessoas que já estão na universidade conseguem entender direito, como se fosse um advogado apegado a um juridiquês extravagante, exigir que o leitor entenda seu ponto de vista não faz sentido. Falta de clareza, em frases que ninguém entende só para fazer um rococó afasta o outro e, muitas vezes, esconde falta de qualidade e talvez de pesquisa.

Feito meu desabafo, quero voltar à história da verdade

Eu acredito que a verdade é como uma imagem vista por um míope (e disso eu entendo bem, tenho mais de 5 graus de miopia). Existe o que aconteceu e as versões. Também existe o que queremos acreditar e o que queremos que acreditem. São muitas camadas. Se essas camadas se coincidem, a gente tem uma imagem bem nítida e quanto mais elas divergem, quanto mais são diferentes, mesmo que só um pouco, as imagens se tornam embaçadas, aumentando o grau da miopia.

Foto de Alexander Krivitskiy no Pexels

Pode acontecer de muita gente achar que está vendo uma coisa e a verdade ser outra? Claro que pode. Basta pensar que muitas das camadas sobrepostas reforcem uma versão e não o que de fato aconteceu. Ou seja, sempre é possível enganar e ser enganado.

Babel, baby.

Falar sobre o que é verdade sempre é complicado. Um mesmo objeto, observado sob diferentes pontos de vista pode ter inúmeros aspectos.

Na vida é igual, cada pessoa ao ver a mesma coisa sob seu ponto de vista, tem uma percepção diferente, mesmo que seja só um pouquinho. Não importa se você levar essa minha afirmação no sentido literal ou no figurado, ela é válida em ambos os casos. Cada pessoa é sozinha uma Babel de idiomas próprios e significados mutantes.

Cada pessoa tende a enxergar as situações segundo o próprio repertório e vivência. O que é um absurdo para algumas, é algo trivial para outras. Desse tipo de recepção diferente à realidade, nascem muitos problemas. Pessoas podem implicar com o jeito de outras, considerando-as esnobes, agressivas, dissimuladas e interesseiras; ou serem simpáticos a elas, por acharem que são autênticas, assertivas, cuidadosas com o que falam e interessadas.

Tentar adivinhar o que o outro pensa ou como fazer o outro pensar determinada coisa de você é de enlouquecer, por mais que todos os dias sejam lançados livros sobre o assunto. Existem algumas fórmulas, jeitos de tentar obter uma comunicação mais clara, em que o o significado original chegue o mais fiel possível ao público, mas não existe ainda uma solução infalível pois a subjetividade tem um peso muito grande nas impressões.

De um jeito bem simples, é aquela coisa: podemos até saber o que falamos, mas dificilmente saberemos o que o outro entendeu. Tentamos diminuir a distância entre as duas coisas, ou a distorção da miopia, quando pesquisamos sobre o público e buscamos simular seu jeito de se comunicar. Mas garantias de que ele irá entender exatamente o que queremos, não existem.

Um dos motivos, já falamos, a comunicação muda o tempo todo. Nós mudamos o tempo todo. Na dúvida, tente ler um texto seu de 10 anos atrás e pense se hoje ainda se sente da mesma forma. Já dá pra ter uma ideia.

O medo de ser contrariado

Confesso que escrever e deixar suas palavras ao vento, para o público avaliar não é uma coisa muito simples. O ego sempre fica na espera por aplausos, mesmo que o objetivo inicial seja fazer um desabafo. Muitas coisas passam pela cabeça. Será que alguém falará pra mim que sou uma fraude, que não sei usar vírgulas, que não entende como eu tenho coragem de tornar essas linhas públicas? Será que haverá um enorme silêncio? Provavelmente sim, já que não divulgo, mas será que em vez do silêncio, alguém escreverá que meus argumentos são ultrapassados e provará que cada coisa que escrevi aqui está errada?

Eu achei que teria medo disso — de ser confrontada, mas em algumas situações eu adoraria receber argumentos interessantes, que me fizessem pensar. É o meu perfil, eu não ligo em abrir mão da minha opinião, contanto que receba um bom argumento. O que acontece é que esses são escassos e, normalmente, o recurso utilizado é o deboche, a agressividade, a acusação, o silenciamento. Em vez de argumentar, vejo pessoas falarem coisas como:

“Cada um tem sua verdade, não preciso saber o que o outro pensa”

“Cala boca! Você não tem ideia do que está falando.”

“Não vou perder meu tempo falando com alguém que não tem doutorado”

Claro que é muito mais confortável ter pessoas concordando com você, mas e a sensação de aprender coisas novas? De descobrir que você pode mudar, simplificar coisas que pareciam muito complicadas? Isso só vem quando a gente discorda e segue no diálogo. Quando é contrariado e aceita conversar até chegar em um ponto que seja legal para os dois. Quando a gente aceita se transformar, deixar de ser de plástico.

O caminho até aqui

Comecei escrevendo motivada por uma certa revolta com coisas que li e ouvi, com cópias que descobri e comportamentos tóxicos que me magoaram nos últimos tempos. Mas veja só, ao me permitir pensar e buscar algumas referências, conceitos já mudaram e a forma como me sentia também. Quando falo em transformação, também é um pouco sobre isso.

Às vezes, a gente não sabe como lidar com as dores que aparecem no dia a dia, não sabe de onde elas surgem. Se a gente fosse de plástico, lidar com isso seria muito mais fácil, talvez. Não haveria sentimento envolvido, nem mesmo dor. Mas a beleza seria essa coisa que brilha e fica encardida, de uma poeira do tempo e do erro, descascando sua artificialidade sem retribuir nada ao mundo.

Foto de Jenna Hamra no Pexels

Com o tempo, a gente sempre mostra do que é feito o caráter, se tem o que retribuir ao mundo ou se o interior é oco, artificial e poluente. Se é tóxico ou nutritivo.

Pois bem, algumas flores alimentam outras, envenenam.

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Written by Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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