Quando a pandemia começou e, sinto muito se você já cansou do tema, mas é o que nos resta em 2020, quando a pandemia começou eu não contava com tanto tempo em casa. Nem com tantas consequências.
Oito horas da manhã de domingo e eu escuto alguém gritar meu nome. Acordo. Escuto mais uma vez. Não é possível. Sim. Estão chamando por alguma menina que deve estar correndo na praça em frente do prédio que moro. O dia está bonito, criança precisa brincar. Oito da manhã de um domingo e não consigo mais dormir. Ao contrário da criança que eu fui, essa menina gosta de aprontar.
Estou trabalhando em home office e não importa o dia da semana, escuto chamarem meu nome. Não pelo áudio do computador, escuto chamarem lá fora, como se pedissem para voltar. É esse isolamento social, com as escolas fechadas, crianças em casa.
Quando eu não tinha muita ciência das coisas
Escuto chamar meu nome, estou com muita dor na mesa de operação, com o braço direito quebrado. O médico pede pra eu contar até dez. Conto. Chama meu nome de novo. “Oi.” Conta de novo. Dessa vez não chego a cinco.
Escuto chamarem meu nome, estou caída no chão da sala de aula. Tinha uns sete anos de idade, talvez seis. Via o rosto dos meus colegas assustados, olhando para mim, parece que alguma coisa séria tinha acontecido.
- Você foi tombando até que caiu no chão. A gente te chamava, mas você não respondia.
A professora chegou. Eu tinha desmaiado. Não seria a última vez, mas é a primeira que eu me lembro. Meus pais foram me buscar mais cedo na escola, todos preocupados com o que estava acontecendo. Eu não sentia nada naquele momento, só lembrava de ter visto umas cenas de guerra.
Estou no sofá de casa enquanto escuto minha mãe chamar meu nome. Devia ter uns 10 ou 11 anos. Ela conta que eu apenas avisei que iria desmaiar e sentei no sofá, desmaiando em seguida. Desliguei e religuei. Não lembro o que vi ou ouvi.
Acordo sobre uma montanha de blusas e mochilas na quadra da escola, aos 14 anos. Meus amigos chamam meu nome de longe, com medo. Eu estava jogando vôlei, na quadra da escola. Caí sobre meu pé direito e a dor era forte. Andei até o amontoado de material escolar, avisei que iria desmaiar e assim foi. Mais caipiras que eu, eles tinham medo que eu tivesse morrido e não fizeram nada. Não foram ver como eu estava, não foram chamar um adulto responsável.
Escuto meu marido me chamar e acordo com dores nos braços no meio da tarde, em uma rua de Copacabana. O sol estava forte e as pessoas no ponto de ônibus ofereciam água. Minha pressão caiu e eu avisei que ia desmaiar, que precisava sentar no chão, mas meu marido tentou me segurar. Vem daí as dores nos braços. Aos 25 anos já não me recupero tão rápido quanto quando era criança. Meia hora depois, consigo ir pra casa.
Estou em um pronto socorro e minha mãe chama meu nome.
"- Avisei para ela que você desmaiava.".
Sim, minha mãe tinha avisado para a enfermeira que eu desmaiava com facilidade. Aos 31 anos eu estava desidratada por uma virose de verão e a enfermeira tentava pegar uma veia no dorso da mão. A agulha escapou, eu apaguei. Minha mãe invadiu o pronto-socorro, brava com a enfermeira que nem tinha percebido que eu havia desmaiado.
O sentir
Desmaiar é uma coisa que não me dava medo. Não antes das crises de pânico, quando eu acordava e depois de um tempo tudo voltava a ficar bem. Normalmente eu voltava mais calma, relaxada. Talvez feliz.
Depois das crises de pânico, o pré-desmaio nunca mais foi o mesmo. Também a frequência de desmaios diminuiu horrores. Na crise de pânico parece que vou desmaiar, mas o momento de desligar não chega. Fico alterada e em alerta. Não tem o voltar mais relaxada e talvez feliz.
Minhas crises começaram em 2013, uma época em que eu estava mais magra, me vestia bem, alisava o cabelo e trabalhava na Berrini. Não ouvia nada me chamar. Tremia no fretado indo para escritório, nas duas vezes por semana em que não fazia home office.
Eu tinha que aguentar a rotina de acordar às 4h30, afinal tanta gente aguentava isso. E eram apenas duas vezes por semana. Eu poderia dormir no ônibus na viagem até lá. Ouvia o motorista chamando meu nome, é hora de descer.
Não dormia mais no fretado, apenas tremia. Quando fui demitida, as crises pioraram. Dores de barriga e choro por qualquer motivo.
Depois das crises de pânico, sentir que vai desmaiar é achar que uma crise está chegando. Sentar, me preparar para desligar e nada. Comecei a ter medo.
Tem remédio
Tem tratamento, altos e baixos. Também tem preconceito. De quem olha de longe, de quem está perto, de mim mesma. A pessoa que nunca bebeu demais, não se interessou por cigarro, agora depende de remédio pra ficar normal. Funcional.
Ouço chamar meu nome e o médico diz que estou melhorando. Que bom! Vem a pandemia, o estado mental de todo mundo piora e o meu também. Ao mesmo tempo em que estamos isolados, não temos tempo para a solitude. As ideias não arejam apesar da yoga, da meditação, das plantas, da costura, da escrita e da paciência que meu marido aprendeu a ter.
Desemprego, baixa demanda de freelas, nada de dinheiro entrando. Não fique com pena de mim, o emprego do meu marido não foi ameaçado e eu sou bem exagerada no que diz respeito a trabalho. Mas nessa situação, você se agarra ao que aparece e olha, de cima pra baixo, muito aproveitamento do desespero por ganhar um dinheiro honesto.
Vou falar do meu mercado, a comunicação. Empresas apertam as agências que apertam os criativos. Uma cadeia de exploração que diminuiu os salários, afinal os tempos estão difíceis, mas não diminuiu o volume de trabalho.
Isolada em casa, trabalhando como nunca, ganhando como há 5 anos. Lidando com diferentes grosserias e respondendo sorridente, afinal, boletos vencem. É difícil o estado mental melhorar assim. É difícil a crise da pânico ir embora assim. É difícil.
Escuto alguém chamar meu nome, dez da noite e é na rua. Gente, essa menina tá brincando a essa hora?
Um tapa de realidade
Estou indo ao supermercado, quero comprar coisas para o Dia das Bruxas. Estão chamando meu nome, mas nem é tão longe. Já estou na calçada da praça, enfim vou ver como é a tal menina com nome igual ao meu.
Olho para o lado, e a mãe repete o nome. A menina responde "O que é?". Meu estômago se embrulha e eu percebo como estava sendo ingênua. A menina não era uma moradora da vizinhança que apenas estava sem aulas. Ela era mais um dos novos moradores do viaduto, provavelmente de alguma das muitas famílias que perderam tudo o que tinham com a crise proveniente da pandemia.
A ela está sendo negada a escola, a infância, a segurança de uma casa e uma boa cama pra dormir. Quando chamam nosso nome, não faço mais ideia do motivo que a mãe dela tem. Será que é medo que abusem dela? Ou que ela seja atropelada? Raptada? Será que é porque conseguiu alguma comida para elas?
Passei meses pensando no fato de ter uma criança com o meu nome aqui perto, que a mãe chamava tanto a ponto de eu estar sempre atenta. Fiz várias relações com a minha vida, autoanálises, fui revisitar quando a vida era simples e gostosa como um bolo de laranja quentinho.
Mas essa foi a minha infância privilegiada. Hoje quando escuto chamar meu nome, acordo mais uma vez, mas agora para essa realidade que 2020 joga na nossa cara sem pedir licença e sem avisar que vai doer.
Garota, queria saber o que fazer para te ajudar, nos ajudar. Quando descobrir, vou te chamar.