Esgotada

Gabi
4 min readJun 9, 2020

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Depois de tantos dias fechada dentro de casa, muita coisa acaba.

Contando que estou em isolamento social desde 16 de março, vendo o país ir de mal a pior, esperava ser uma pessoa cheia de tempo sobrando. Uma pessoa que faz bolo no meio da tarde, lê mil livros e faz aulas de dança. Mas bem, não é bem isso que está acontecendo.

Imagem: Pexels, mas poderia ser eu tentando recuperar o foco.

Não tenho trabalhado tanto quanto gostaria — manda jobs. No começo estudei horrores, agora estou sofrendo com um único curso. Também larguei os idiomas, admito, quando soube que minhas férias foram frustradas. Sim, sou levada por sentimentos desse tipo.

O que tanto se faz?

85 dias e só saí para ir a uma consulta médica na última semana. Ou na farmácia, no outro lado da rua. No último mês estou ensaiando refazer meu portfólio e sofrendo porque as plataformas amigáveis a redatores que não sabem fazer direção de arte ou programação não são bem aceitas pelo mercado.

Antes de continuar, uma volta ao passado

Ah, o mercado das agências de publicidade. Tanto glamour falso, tanta pizza vagabunda, tanto saudosismo… Na época da formatura eu tinha uma dificuldade enorme, aliás, mais de uma.

A primeira: eu não tinha nem família nem amigos importantes, e na área isso faz toda a diferença. Talvez 15 anos atrás fizesse ainda mais. Ninguém me colocou como estagiária de um grande figurão porque papai pediu, ou porque minha tia era dona da conta de marketing de uma multinacional, ou porque… você deve conhecer as histórias.

Segunda dificuldade: precisava ter uma pasta de couro para apresentar seus trabalhos e ela era cara, muito cara, mais de salário. Você também poderia ser muito criativo e mandar produzir seu material em formatos inusitados. E eu mal conseguia pagar para imprimir o material da faculdade.

Terceira: professores elitistas. Enquanto pessoa sem dinheiro, minha única chance, na época, era cursar universidade pública. Foi o que fiz e não me arrependo, mas na minha universidade tive ótimos professores e outros que estavam muito fora da realidade e não tinham o menor contato com o mercado. Só que os piores mesmo eram os que reproduziam o mercado a tal ponto de só querer ensinar para quem era filho de alguém.

Minha primeira orientadora de TCC abandonou meu grupo sem ao menos avisar, para orientar outro grupo que tinha gente assim, mais bem nascida.

Voltando

Enfim, essa coisa de ter que fazer o portfólio em domínio próprio, com um design único e programado sem o auxílio de plataformas facilitadoras é absurdamente elitista. E burro.

A coisa elitista é bem clara, não? Você tem que arrumar contatos ou pagar para alguém fazer a parte do trabalho que não é sua especialidade. Isso elimina os profissionais que não são de origem privilegiada, quem está no começo da carreira e não tem muitos contatos, quem não tem um bom computador em casa, quem se desdobra para pagar as contas e tem um puta talento.

Vendo por esse lado, parece que as grandes agências donas das grandes contas não estão preocupadas com o talento, só em manter seu grupinho de sempre.

Aí entra a coisa burra. As grandes contas não vendem só para as classes privilegiadas. Para os machos brancos, héteros e cis bem-nascidos. A gente já viu algumas campanhas com problemas pela falta de diversidade.

Mas também, se for olhar a parte técnica, uma pesquisa analisou mais de 10.000 sites e concluiu que eles são todos praticamente iguais. E assim, no design e na programação. De forma que, exigir que as pessoas paguem mais para exporem seus portfólios com a desculpa de usabilidade é um tanto… besta.

Claro que o meio é tão importante quanto a mensagem, mas será que não se perde os melhores talentos e aumenta as diferenças sociais por puro esnobismo?

A paciência também se acaba

Enquanto o portfólio não desenrola, montei um quebra-cabeças que veio sem 11 peças, já costurei 7 peças de roupa e estou na oitava, comprei plantas e ajudei meu marido a mudar a decoração da sala.

Nada é tão decepcionante quanto montar um quebra-cabeças e ele estar incompleto.
Esgotadas as peças, desenho incompleto.

Comecei e parei de fazer yoga algumas vezes e acho que agora vai. Deixei de pintar o cabelo. A princípio era para guardar a tinta para quando acabasse a quarentena e eu fosse sair, e deixasse o cabelo descansar enquanto isso. Mas a quarentena se alonga e o comprimento da raiz branca vai junto.

Acho que vou deixar ficar cinza, branco, grisalho. Vi que muitas mulheres, anônimas e famosas estão nessa mesma fase e isso é até tranquilizador.

Novo normal, dizem.

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Gabi
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A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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