E quando a instituição é que falha com você?

Sim. Instituições falham com muitas pessoas em casos muito mais sérios. Mas a sutileza aqui me fez demorar mais de 20 anos para perceber o que havia acontecido. Entenda.

Gabi
4 min read4 days ago

Não sei se é uma configuração astral ou se foi o tanto que minha mãe rezou pedindo por mim. Nas últimas semanas a vida resolveu se resolver, em pacote, com várias coisas ao mesmo tempo. Claro que nem tudo do jeito que eu gostaria, mas como em um final de temporada de série, fechando alguns arcos que ninguém aguentava mais.

Nessa, estou fazendo as pazes com coisas que nem sabia que seriam possíveis. Como a faculdade de física. Para mim, a faculdade de física tinha sido um sonho infantil, uma vontade de impressionar minha mãe, que virou uma autodecepção. Desperdício de dinheiro em uma época que meus pais passavam muitos apertos, não de conhecimento, porque conhecimento a gente nunca perde. Usei o que aprendi na faculdade para dar aulas particulares e conseguir bolsa no cursinho, que me levou à faculdade de comunicação.

Eu acreditava que entender que isso tudo tinha sido a minha jornada já era uma conclusão. Eu não preciso ser boa em tudo o que faço. Sim, eu trazia um sentimento de incompreensão da faculdade. Eu explicava a matéria para as outras pessoas e elas tiravam nota na prova, mas eu não. Minhas notas eram ruins mesmo quando eu acertava as respostas. Às vezes, os professores falavam que apesar da resposta certa, eu não tinha colocado o raciocínio detalhado — então eu perdia pontos. Às vezes, apesar da resposta certa, os professores falavam que eu detalhava coisas que eram óbvias — então eu perdia pontos. Às vezes, eu respirava — aqui é brincadeira (ou não).

Na época eu achei isso injusto e tentei argumentar, não deu certo. E com o passar do tempo, comecei a acreditar que tudo era alguma forma de fuga da minha cabeça. Uma história que eu tinha construído para me consolar, para fazer eu acreditar que não tinha sido atrapalhada por um sistema machista. Até ontem.

20 e tantos anos depois

Há algumas semanas, meu irmão pediu ajuda com um exercício da pós-graduação dele, porque ninguém da turma tava sabendo como fazer. Meu irmão é formado em administração, mas na turma dele tem um monte de engenheiro, alguém deveria achar um jeito.

Eu falei que tinha fugido da faculdade de física (O que é verdade, eu nem tirei minhas coisas do armário ou dei baixa na secretaria), mas não resisti e fui dar uma olhada. Li o enunciado, vi as figuras, interpretei e falei como achava que ele deveria resolver.

Ontem fiquei sabendo que ele tirou 10 no exercício. O professor perguntou como ele conseguiu resolver, porque apenas uma pessoa formada em física conseguiria chegar na solução. Então ele explicou que a irmã dele (no caso, eu) tinha feito física e que eu tinha ensinado ele.

O professor falou que a resolução pulava algumas etapas, mas estava correta e meu irmão só mandou um “é porque essas etapas eram óbvias”, ao que o professor concordou. Coisa que nunca deu certo comigo, que os meus professores nunca aceitaram. Eu, como mulher, tinha que escrever as respostas exatamente como os professores achavam que elas deviam ser, ou a minha nota era zero. Sem direito a recurso.

Recentemente recebi um diagnóstico de superdotação e uma amiga falou sobre como nosso cérebro faz raciocínios de um jeito diferente das outras pessoas (Obrigada, Maressa, foi fundamental para eu entender o que aconteceu).

Em muitos casos, dizem que a gente não aprende como estudar. Por tudo ter sido muito fácil de aprender a vida toda, ao chegar numa faculdade mais exigente, é uma pane geral.

Mas, depois de juntar as peças e ver meu irmão tirar 10 com uma solução que provavelmente me renderia um zero, entendi que não fui eu que falhei na faculdade de física. Foi a instituição, os professores machistas e o modelo de ensino arcaico que falharam comigo.

Estou livre

É incrivelmente rejuvenecedor se libertar desse tipo de peso. Não acho que a ciência brasileira perdeu uma grande cientista por minha causa. Não dá pra saber de verdade se eu faria alguma coisa grandiosa.

Mas tenho certeza que a instituição universitária, como ainda é hoje, perde talentos todos os dias. Falo isso porque das pessoas que estudaram comigo, apenas uma ou duas seguem na área. Mesmo quem se formou foi fazer outra coisa.

Enfim, todo mundo fala do ego dos publicitários (a carreira que eu acabei seguindo), mas é porque não conhecem o ego dos acadêmicos da física. Agora que estou livre do meu passado, posso falar sem medo: Sheldon é um retrato leve.

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Gabi

E lá vamos nós! Terra do Nunca? Bad Place? Certamente atravessamos o espelho.