Quando a gente estuda história, quando a gente estuda a história do Brasil, por exemplo, no período da colônia ou do império, chega um momento em que o professor fala que a diferença entre a quantidade de escravizados e de pessoas livres era tão grande que, se os escravizados se unissem, poderiam derrubar tudo.
Então o professor explica que os escravizados eram de diferentes origens, nem todos falavam o mesmo idioma ou tinham a mesma cultura. Isso seria a explicação para a falta de unidade. Para uma criança, essa explicação foi suficiente, mas hoje, ah, hoje não é.
A gente vai crescendo, cada um vai vivendo sua vida e acha que está escrevendo a própria história. Com maior ou menor autonomia, escolhe a profissão, os amores, o lugar em que vai viver e a imagem que quer passar. Em teoria tudo é escolha, livre-arbítrio. (Qualquer dia preciso refletir mais sobre o conceito de livre-arbítrio)
Mas veja bem, diz-se que no Brasil, em 2024, a escravidão foi abolida.
Quer dizer, parece que nem para todos. Mas tirando o caso socialmente descrito como criminoso e indo para esfera aceita legalmente. A da desigualdade. Pois é, a desigualdade social é um fenômeno maravilhoso.
Maravilhoso, pois é um salve-se quem puder, um cada um por si incrível. Outro dia vi a Rita Von Hunt falando sobre o conceito de aproveitar os benefícios mas abrir mão dos problemas, no que se refere às heranças de quem vem de família que fez dinheiro explorando, matando, saqueando e escravizando, entre outras coisas. E ainda se acham melhor que o resto dos mortais, não é ótimo?
Em se plantando tudo dá
No país em que vivemos, que tem safras recordes de alimento, tem gente passando fome. Sim, houve uma época em que a gente tinha saído do mapa da fome, mas voltamos. Segundo o IPEA
O Brasil é conhecido por sua alta concentração de renda, onde o 1% mais rico da população detém 28,3% da renda total, tornando-o um dos países mais desiguais do mundo.
E apesar de toda a contribuição do ex-presidente que gostava de fazer arminha com a mão, ele não é o único culpado. Ele é um sintoma de um tipo de pensamento corrente. Afinal, foi eleito democraticamente, com forte apoio empresarial.
Mas voltando à desigualdade, com tanta concentração de renda, é estranho que uma grande parte da população apoie justamente quem está tentando concentrar ainda mais renda.
Mas não é um fenômeno novo. A frase do Churchill “Nunca tantos deveram tanto a tão poucos” foi dita em 1940 num contexto de guerra mundial e continua válida. Enquanto as poucas pessoas que acumulam bilhões de dólares em suas contas bancárias constróem seus bunkers para se proteger do fim do mundo, eu e você passamos um calor sem fim na vida real, virando a noite para entregar o trabalho que poderia esperar até amanhã.
Enquanto a gente trabalha para pagar nossas contas, mas tem acesso a água potável, cama, Rivotril e Netflix, milhares de outros estão morrendo de calor, ganhando centavos por dia para fazer roupas descartáveis, comendo em condições insalubres. Será que é tão diferente da realidade dos escravizados? Acho que não.
Sistema
Tudo é construído para parecer natural. A gente acha que a ordem das coisas sempre foi assim, que o capitalismo sempre existiu e que não há o que se fazer. As religiões tendem a nos colocar obedientes falando sobre coisas que precisamos aprender, resgatar, pagar. Nossos pecados que vêm de outras vidas ou como uma herança dos antepassados. Uma forma de manter o status quo.
Temos que ser submissos a uma força maior e somos culpados pelas nossas dores. Bem, essa é uma parte da história que ouvimos. Porque também somos nós que escrevemos essa história e temos uma contradição bem interessante aqui.
As coisas não estão legais, e não estão legais a milênios. Não foi a industrialização que criou a desigualdade, o capitalismo só acelerou o processo. Nos revoltamos, mesmo com todos os esforços da religião em nos manter mansos, a revolta vem. E quando ela vem, sempre tem aquela pessoa que consegue romper as barreiras, seja pelo trabalho, por ideias brilhantes, pela arte ou pelo crime. Mas aí o que acontece depois?
- Se eu tive que me esforçar, os outros também têm.
- Eu consegui e agora quero reconhecimento.
Percebe que em vez de fomentar uma mudança — coisa possível a partir do momento em que entendeu como vencer o sistema, a pessoa que supera todos os desafios normalmente vira as costas para quem também tem dificuldades e passa a viver pela validação de quem a oprimia? Não quer justiça ou igualdade, quer fazer parte do grupo seleto de pessoas opressoras. Dos 1% com privilégios, acesso à educação e saúde.
Acontece que o sistema é feito para alimentar a exclusão. Sempre vai ter um nível mais alto, mais exclusivo e mais privilegiado. O conforto psicológico nunca virá. Você mulher, agindo de maneira machista, uma hora vai ser vítima do próprio machismo. O brasileiro metido a racista vai ser menosprezado pelos racistas que forem de origem europeia. E por aí vai. Mesmo que seu opressor te dê uma estrelinha, ele continua sendo seu opressor.
Agências
Acho que todas as profissões têm suas relações hierárquicas doentes, mas só conheço de verdade a minha e é sobre agências de publicidade e comunicação que vou falar.
Existem as agências que ganham prêmios e os profissionais famosos. E existem as agências e equipes que realmente fazem o que precisa ser feito. Às vezes elas coincidem, muitas vezes não. Nem todas as peças premiadas são efetivas para os clientes. Nem todo trabalho feito ao longo das madrugadas vê as ruas, porque a gente está sujeita às concorrências, o que é uma prática bem rídicula em que muita criatividade é jogada pelo ralo.
Enfim, não importa muito. Homens brancos contratam preferencialmente homens brancos, bem nascidos, que tenham estudado em boas faculdades. O portfólio é bom? Nhé… As ideias são boas? Nhé… Ele tem entregue o que é pedido? Nhé… Mas segue sendo promovido. É filho de alguém, amigo de alguém.
Mulher tem TPM, pensa diferente, pode engravidar. Negro passa uma impressão estrava. Periférico não pode virar a noite, nunca foi pra NY, fica deslocado nas conversas. Trans? Ah, não vai se enturmar. Aí saem algumas campanhas bizarras, agressivas, enviesadas. Mas as marcas não se importam em checar quem são as pessoas que participam das equipes. E o perfil segue homogêneo.
Tudo isso para dizer que sempre achei estranho, tendo visto toda essa dinâmica, perceber que as pessoas fazem muita questão de conseguir um espaço nessas mesmas agências que todos sabem serem insalubres. Porque têm nome — mesmo que paguem menos para mulheres. Porque dão status — mesmo que você tenha que fazer o seu trabalho e o do coleguinha sobrinho do cliente.
E você contrata pessoas com a mesma origem que você? Mulher, negro, LGBTQIAP+, periférico, PCD? Não. Você não quer ser uma pessoa que se destaca por causas, quer se destacar pela criatividade ou sei lá o que. E continua contratando o padrão. Se torna a excessão que confirma a regra. O token.
Não, isso não acontece só em agências de publicidade, apesar dos publicitários acharem que são exclusivos nos problemas. Isso é um problema geral no mundo. Tem menos desigualdade social entre os belgas porque eles exploram países africanos. É um sistema todo corrompido precisando ser pensado e mudado. Tenho respostas? Não muitas. Mas acho que a gente pode começar tirando um pouco da força de quem nos oprime, seja a expectativa de reconhecimento do estrelinha de redes sociais ou compartilhando conhecimento com quem precisa fazer os mesmos caminhos que a gente já fez.