Barulho

Gabi
6 min readJul 28, 2021

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Desde 2013 eu tenho (conscientemente) crises de pânico. No começo foi mais difícil. Nas primeiras vezes, eu não sabia o que era, mas lembro das palpitações fortes e das cólicas. A sensação de um quase desmaio eterno. Achava que minha pressão estava baixa. Estava alta. Que meu coração estava pifando. Que eram gases. Que eu tava dando show.

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Meu marido falava que não, que de fora parecia que eu tava normal. Acho que foram uns três meses pensando que eu tinha alguma coisa física, chegando no pronto-socorro e nada nos exames.

Então eu fui demitida.

A empresa em que eu trabalhava na época tinha sido fraudada pelo financeiro, precisou se desfazer de boa parte da equipe. Não passei necessidade. Com o acerto, teve FGTS, Seguro Desemprego e tudo o que acompanha, logo depois comecei a pegar freelas. Mas a sensação de derrota veio e as crises pioraram. Racionalidade foge.

Era o aniversário de uma amiga, em um dia particularmente quente. Na ida eu já passei mal e fiz meu marido parar em um bar pra eu me sentar com a sensação de desmaio, bebe água, respira, se acalma. Vamos.

Tudo parecia ir bem, todos felizes, sorrindo. Mais gente chegando e o volume ambiente subindo. Parabéns à você… eu paralisada, arfando no sofá. Suando frio. Coração disparado, não ousava me levantar sob o risco de cair desmaiada. Ouvia as pessoas conversando animadas na cozinha, comendo bolo, bebendo espumante rosè. Meu marido ao meu lado, sem saber o que fazer.

Por sorte a aniversariante sabia. Perguntou o que eu sentia e falou:

Acredito que você está tendo um ataque de pânico. Minha irmã já teve. Vai passar, mas você precisa procurar um psiquiatra.

Saber que não era uma invenção da minha cabeça já ajudou a me acalmar. O caminho ainda está longe de acabar, nem sei se um dia chegará ao fim antes de eu morrer. Mas oito anos depois, a vida é bem melhor.

O primeiro ano foi o mais difícil.

Tive muitas crises. Tive muito medo que as pessoas soubessem que eu tomava remédio para pânico. Tive muito medo de não conseguir emprego por causa da síndrome de pânico. Tive dificuldades em ir à praia, ao supermercado, às festas de família. De visitar meus pais, pois sair da rotina era muito estressante e um momento feliz se tornava um estímulo forte demais pra minha cabeça.

Com medicação, terapia e apoio fui melhorando. Alguns amigos foram fundamentais, acalmaram, ensinaram o que fazer e o que evitar. Meu marido foi sensacional, mesmo sem saber direito o que fazer, ficou ao meu lado. Prestou atenção no meu comportamento e percebeu antes de mim os sinais de quando eu ia ter uma crise. Isso foi fundamental pra eu aprender a lidar com o que seria particular. Afinal, cada pessoa é única.

Nem tudo deu certo.

Com o tratamento eu engordei mais de trinta quilos, mais do que eu havia emagrecido e mantido bem há alguns anos antes da crise. Mais de ano sem ter crise de pânico, bem no trabalho, sem nenhum episódio depois de mudar de casa e cidade, praticando yoga, achei que era hora de tirar o medicamento e cuidar do resto da minha saúde.

O psiquiatra tirou um dos medicamentos de uma vez, falou que foi ele que havia feito eu engordar e que não fazia sentido eu continuar tomando. Mandou eu procurar um endócrino. Lá fui eu, endócrino mandou eu tomar uma fórmula. Avisei: Olha, não acho legal, faço tratamento psiquiátrico, pode dar interação. Ele garantiu que eram só ervas pra melhorar a digestão.

Antes de mandar produzir, voltei no psiquiatra e perguntei, afinal sei que ervas naturais dão interferência em medicamento. Não se iludam, medicamentos nasceram das ervas, e as plantas de maconha e coca também são naturais.

Enfim, psiquiatra falou que podia tomar, que não tinha nada que fosse dar problema ali. Mandei fazer a fórmula e comecei a tomar. Dois ou três dias depois, as crises de pânico voltaram com tudo.

O barulho tinha voltado a crescer em volta de mim. Achei melhor marcar outro psiquiatra, e dessa vez arrastei meu marido pra consulta. Tava começando a duvidar de mim mesma, será que eu entendia as coisas erradas? Será que me sabotava? Fomos na consulta, eu tremendo mais que um pinscher, mas consegui falar. A médica foi ficando branca, e quando viu a receita, falou que eu nunca poderia tomar aquela fórmula. Esse foi o momento em que ela quebrou o silêncio e não aguentou mais manter a postura de não criticar o colega.

Uma semana depois eu já estava funcionando de novo. Deixei a questão de emagrecimento pra outra hora mais uma vez. Fazia exercícios, mas não cheguei a emagrecer. Estava para deixar o medicamento no começo de 2020, cheguei a diminuir bastante, até que…bem, pandemia. Pausamos tudo.

Sobre barulho

Viver a pandemia intensamente, em 50 metros quadrados de um apartamento na região central de São Paulo é desafiador. No geral, tá tudo bem. Eu e meu marido conseguimos nos manter trabalhando, nossa renda não caiu, ficamos protegidos em home office ou o que quer que seja isso. Ninguém muito próximo a nós foi seriamente atingido, apesar de ver amigos sofrendo muito.

O começo foi interessante, o nível de barulho da cidade diminuiu e confesso que gostei disso. Mas essa prisão prolongada pela falta de entendimento que cuidar das pessoas é cuidar da economia, cobra um preço alto. Com o passar dos dias, o silêncio foi trocado pelo barulho de ambulância indo pros hospitais próximos, helicópteros, se forem pacientes ricos. Vizinhos em obras, um deles, um posto de gasolina, que garante o funcionamento de uma britadeira quase dentro da minha cabeça. Reuniões online e o fone de ouvido faz o volume da voz do meu marido subir. Bem ao meu lado enquanto tento me concentrar.

A falta do mínimo de esforço físico para andar por aí, nem que seja até o ponto de ônibus, até o boteco ou o passeio de domingo na Paulista, tá cobrando um preço alto. Pensei que seria só na saúde física, mas a saúde mental tá indo junto. A cabeça cansada, mas o corpo nem tanto dá problema na hora de dormir. Duas, três da manhã e cadê sono? Depois passo o dia todo querendo tirar um cochilo e assim vai sucessivamente.

Resultado? Crises. Na maioria das vezes são leves, mas aparecem. E para quem tem ansiedade, o medo de ter mais uma crise alimenta a próxima crise, assim como o batuqinho na mesa, o som das marteladas na parede, a sirene da ambulância e a falta de perspectiva do governo nacional.

Soluções

Estou buscando o que funciona para mim e acredito que cada pessoa tem seu conjunto de respostas. Meu médico indicou que eu use protetor auricular para ter mais isolamento acústico, tanto para trabalhar quanto para dormir. Estou testando e posso falar que tem me ajudado a dormir bem melhor.

Também preciso dar um jeito de incluir exercício físico e confesso que está difícil acordar cedo. Ajustar o sono está sendo um desafio enorme. Tenho feito ioga à noite alguns dias, é alguma coisa, mas ainda é pouco.

Sinto que estou precisando de férias. Mas de férias de mim mesma. Como faz? É como se eu precisasse silenciar as vozes internas da autossabotagem, do medo, da comparação com quem já fui e com quem idealizei que seria hoje. Não dá. Aonde quer que eu vá, estarei lá.

Sendo assim, seguimos em terapia, tratando o possível e tentando melhorar um pouquinho por vez. Talvez, um dia, eu consiga silenciar tanto barulho ao meu redor e voltar a escutar o que preciso me falar.

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Gabi
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A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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