Nosso momento histórico e a dificuldade de tentar ser uma pessoa correta apesar dos pesares.
O ano é 2019 e vamos deixar bem claro, eu não votei no atual presidente do Brasil por tudo de ruim que ele representa. É importante para mim começar por aí, porque desde as últimas eleições isso tem sido um assunto recorrente na minha vida. A família estremeceu, amizades foram abaladas, mas minha convicção de não compactuar com a representação do machismo, racismo e lgbtfobia, entre tantas outras coisas, continua intacta.
Em 100 dias de governo dizem que ele cumpriu mais promessas que seus antecessores. É mais fácil cumprir promessas quando elas são vazias e sem sentido, mas o fato é que este senhor vem cumprindo exatamente as promessas que os eleitores achavam que ele nunca iria cumprir. As que eram só “da boca pra fora”.
Ao longos de três meses o terror foi liberado. Feminicídio pra todo lado, sem previsão de melhorar. Gente acreditando em Terra plana, vacina transmitindo autismo, nazismo de esquerda. Governo incentivando, ordenando, a celebração da ditadura. Foi isso que a maioria dos votos válidos escolheu. Preste atenção nas palavras: votos válidos. Não é maioria da população. A maioria da população estava e está perdida nesse tiroteio, não sabe o que fazer e para onde ir. Tem fome, precisa de saneamento básico, saúde, segurança, educação. Deixou acontecer? Deixou. Mas não vou a maioria absoluta que elegeu o presidente, foi a maioria dos votos válidos, que é uma quantidade relativa.
Os índices econômicos vão mal. Podem falar que foram herdados de governos passados. Do golpista, que não fez absolutamente nada enquanto governava. Da presidenta, que falava umas loucuras que agora fazem algum sentido.
Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder. — Dilma Roussef
Bem, já faz algum tempo e pelo andar da carruagem não acho que dê para falar que a culpa seja dela ou do barbudinho. Gosto deles? Não, definitivamente não. Mas os fatos existem para ajudar a analisar as coisas com menos subjetividade. Eles não eram maravilhosos, mas convém destacar que de vampirão golpista pra cá, a desigualdade social piorou uma eternidade.
Limão em limonada
Pois é, eu também já achei que cotas eram injustas, que existia racismo inverso, que meritocracia existia e todo esse tipo de asneira que branco hétero classe média aprende que é certo. Até que acordei pra vida real.
Já viu uma pessoa negra dentro de uma loja de shopping? Já viu como ela é seguida o tempo todo, nem que seja com os olhos? Já reparou que o seu problema de falta de dinheiro às vezes é não poder comprar um supérfluo? Tem gente que não pode comprar o que comer mesmo, de verdade. Já pensou nas pessoas que moram na rua como pessoas e não como objetos?
Então, de vampirão pra cá o número de pessoas em situação de extrema pobreza aumentou e não é porque tem muito preguiçoso por aí. Não é porque a economia mundial retraiu (não é esse o caso agora, isso foi em 2008), não é porque Deus simplesmente quis assim. É por conta de decisões políticas que privilegiam quem já tem muito privilégio, vão minando a economia, tirando direitos e empregos por aí.
Reforma trabalhista? Sinto muito, se você acreditou que ela foi boa, você precisa pensar melhor. Cadê os empregos que seriam formados? Os aumentos de salário que iam injetar dinheiro na economia? Tem fábrica fechando pra todo lado, de vários setores. Reforma da previdência tá indo pelo mesmo caminho e a gente nem tá se dando conta.
Mais gente desempregada, mais gente desesperada. Mais gente usando e traficando drogas. O mundo real não é bonito. É violento e chega até a classe média branca e estudada.
Chegamos ao dia de hoje
Sair do trabalho e andar 5 minutos até a estação de metrô ou ao ponto de ônibus. É muito privilégio. É confortável, é rápido, funciona, a linha não é lotada, a vida é boa. Só que o caminho é escuro e vazio. Normalmente não me acontece nada.
Hoje o telefone tocou, normalmente está sem som — não foi o caso. Aí atendi, era telemarketing. Em seguida um homem de mais ou menos 35 anos, magro, devia ter a minha altura, camiseta listrada azul marinho e branco, calça jeans, faca na mão.
Só quero o celular.
Pedi para pegar o Bilhete Único, que ficava dentro da capinha, ele deixou.
Segue reto.
E eu fui, sem celular, mas com Bilhete Único. Minutos depois, tipo, dois minutos depois, uma viatura passou por mim. Tive que descrever o assaltante, falei o que estava em cima.
Você lembra se ele era branco ou negro?
Sim, eu lembrava, era negro. O policial deu recomendações de ligar para o 190, de fazer o B.O. pela internet, bloquear o chip na operadora etc. Eu resolvi ir embora de ônibus, para não ter que caminhar entre o metrô e a minha casa. O ponto de ônibus é bem mais perto de casa que a estação de metrô. Mas aí veio a revolta do ambulante que escutou minha conversa com o policial.
Claro, agora todo negro é ladrão…
A partir do momento que a viatura saiu, o moço começou a me xingar. Acho que para ele existe a revolta e o medo que o racismo provoca e que muita gente só finge que não existe. Eu não tive condições de tentar argumentar qualquer coisa. Aos olhos desse rapaz, de assaltada passei a agressora e o pior é que eu entendo os motivos dele.
Voltei ao plano inicial, fui para o metrô. Vim chorando 45 minutos, porque fui assaltada e pelo monte de merda que ouvi. E também por saber que essa situação vai continuar assim por um bom tempo. Medo, desconfiança, racismo, divisão, gente chorando… um inferno.
Agora é aprender e evoluir
Podia ser qualquer um, tem noia de todo tipo ali na região, inclusive mulher. Agora é me adaptar, entrar e sair mais cedo para não me expor tanto ao risco, já que a situação continua difícil para todo mundo.
O aparelho? Barato, de uma marca que nem existe mais, mas funcionava bem. Nesse sentido é mais o inconveniente, a frustração e o sentimento de ter uma coisa tirada à força. Já tinha um bom tempo de uso, sua câmera era bem mais ou menos.
Agora vou ter que achar um modelo pra comprar que não seja caro, que seja fácil de usar, não dê tanto problema e por aí vai… mas sério, isso não é solução. Nossas escolhas diárias, nossas escolhas nas eleições e em cada gesto, na hora de educar filhos, de aceitar troco errado, de furar fila, de ser preconceituoso, de demitir funcionária grávida, de aceitar que um bandido fique solto só porque é rico, de ignorar a história em troco promessa vazia de benefícios só para seu grupinho, tudo isso contribui para manter e agravar a violência.