A dose de veneno que me compete

Os dias andam difíceis para quem trabalha no mercado de comunicação

Gabi
4 min readNov 13, 2023

Como uma boa parte da população, eu não sou de uma família quatrocentona, não tenho sobrenome importante ou uma conta bancária bilionária. Eu sou aquele tipo de pessoa que é afetada pelas variações políticas e econômicas, ainda que eu tenha um certo privilégio. Sim, reconheço. Eu estudei, tenho uma rede de apoio razoável e não acho que corro perigo de passar fome.

Foto de Nataliya Vaitkevich

Mas é aquilo, sei o que é ter dificuldade em encontrar um emprego quando o mercado está instável. As empresas usam lay-off para falar de demissões em massa, sendo que são coisas diferentes. Lay-off supõe um apoio, recontratação depois de um tempo e aqui tá acontecendo é demissão em massa mesmo. E muitos dos demitidos são PJ, pessoa jurídica, o que significa que nem receberão um auxílio do governo como seguro-desemprego. E muitos nem sabem disso, só descobrem quando precisam.

Estar trabalhando, neste caso, deveria ser um grande sinal de tranquilidade. Muitas pessoas pensam que sim. Mas além da demissão sem nenhum suporte estar sempre a espreita, o desmantelamento dos direitos trabalhistas tem aumentado cada vez mais os casos de ansiedade, depressão e outros problemas de saúde no trabalho.

Sim, eu acho isso, mas não precisamos nos fiar na minha opinião nem nos acontecimentos tristes com pessoas próximas que tenho acompanhado. Saiu uma pesquisa sobre quais setores oferecem melhor qualidade de vida para os funcionários e não fiquei surpresa de ver que Publicidade, Marketing e Eventos estão nas últimas posições.

Você pode me falar que nem todas as empresas são iguais. E é claro que não são. Mas com 18 anos de experiência nesse mercado, já sofri bastante assédio moral para perceber que o padrão é destrutivo.

Meritocracia, quem ainda acredita nisso?

Na comunicação o mito da meritocracia parece que ganha uma aura brilhante. Como se os grandes nomes não fossem todos dos mesmos círculos restritos, com algumas exceções para manter o controle.

Enquanto um ou outro talento fura a bolha, a grande maioria de líderes homens, brancos de boa situação financeira familiar continuam a comandar equipes que trabalham sem um planejamento adequado, sem respeito ao que fazem, com salários às vezes defasados. Se for mulher, negro ou homossexual, sinto muito, são grandes as chances do salário ser menor que o do colega branco de mesmo nível.

Nos últimos meses vi alguns casos cruéis acontecerem. A pessoa que organizou o comercial da empresa foi afastada da área que dava a maior parte dos seus rendimentos pois teve um bebê, os sócios acreditavam que ela não daria mais conta do trabalho.

Outra pessoa foi demitida quando levantou ao gestor que eles precisavam melhorar a organização, pois o excesso de informações erradas e de erros decorrentes estavam causando crises de identidade. O gestor alegou que faltava brilho nos olhos dessa pessoa.

Uma pessoa excepcional ficou adiando seu tratamento médico que exigia uma licença, para participar de uma entrega grande da empresa. Infelizmente a saúde não aguentou esperar, e nós perdemos um amigo querido. Não importa o que diz no atestado, para gente ele morreu de trabalhar. A entrega da empresa? Foi feita por outras pessoas, o evento rolou como se nada tivesse acontecido.

Cultura tóxica

Esse trecho aborda suicídio e pode ser gatilho para pessoas. Na minha área de trabalho com péssima qualidade de vida a notícia de pessoas que tentam (e algumas infelizmente conseguem) se matar já virou rotina. Imagina você ganhar mal, dormir pouco, sofrer diferentes tipos de assédio e sempre estar achando que será substituído. É basicamente isso que acontece.

Claro que para nós, mulheres, sempre é um pouco pior. Sempre fomos ensinadas a ter medo, sempre nos oferecem salários menores ou recusam nossos pedidos de promoção. Sempre acham que nossas denúncias de assédio é exagero: “— Conheço o cara, super gente boa, não faria isso.”

A gente tem medo de denunciar e entrar numa lista de indesejados no mercado da publicidade, enquanto os homens, bem, fazem o que querem. Assediam colegas, deixam de entregar os trabalhos, publicam segredos de concorrência nas redes sociais, vendem equipamento da agência e continuam conquistando suas vagas para ganhar mais que as mulheres.

Claro que o fato de um indivíduo ser complicado não significa que todos sejam. Nem que os homens estejam livres dos problemas que o mercado das agências impõe. O sistema como um todo é errado e ao sair uma peça, outra é colocada no lugar. Mas isso não significa que os casos isolados não devam ser tratados.

Na última semana rolou um post em que um profissional anunciava seu suicídio por conta do seu ambiente de trabalho. Isso já seria uma coisa grave, mas a pessoa em questão já fez posts assim antes, de outros lugares que trabalhou. Ou seja, não é o problema em uma agência, é uma coisa maior, recorrente no mercado.

Isso é um desabafo e um alerta

Ter boletos e medo de ficar sem trabalho, que situação. Mas doentes, gastamos mais. Vale a pena? Para que estamos vivendo se o nosso tempo é para enriquecer os outros e pagar contas que nem sabemos se precisamos fazer. Porque na comunicação tem essa demanda de ilusão por um estilo de vida X com roupas, carros, restaurantes específicos. Sua saúde vale isso?

Não vou negar, sempre fui de trabalhar ao máximo. Pegar tudo o que der pra fazer, deixar o descanso pra depois. Mas agora me pergunto se isso compensa e acho que já sei a resposta.

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Gabi
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Written by Gabi

A gente escreve o que não entende para entender o que não se escreve.

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